COM QUE DIREITO SE REJEITA O DIREITO NATURAL?

Autor: Prof. Dr. Scott Randall Paine

Parte I

Escolhi o título a partir de certo mal-entendido. Pensei que este seminário seria dirigido contra o Direito Natural, mas os conferencistas de ontem elogiaram tanto o Direito Natural, deram tanto apoio à tese da sua importância, que o título escolhido fica um tanto inoportuno. Não há pois, no momento, tanto a necessidade de defender o Direito Natural quanto um convite de delinear mais amplamente os seus contornos e especificar mais precisamente a sua essência.

Estou aqui numa casa do Direito, falando sobre um assunto que tem muito a ver com a filosofia política e com jurisprudência, não a título de um especialista, ou de um perito nessas áreas. Sou professor de filosofia e trabalho predominantemente com a filosofia teórica, a filosofia especulativa, até com a metafísica, que é a parte da filosofia mais especulativa de todas, tão especulativa que alguns dos meus colegas na UnB acham que esta ciência nem existe. Por isso, fiquei surpreendido com o convite, mas entendi depois o sentido da minha participação.

Tenho me ocupado, há quase 20 anos, com o pensamento de Tomás de Aquino, todos os aspectos desse pensamento, também o aspecto prático, político, ético, e posso ajudá-los a familiarizar-se um pouco com os fundamentos teóricos, filosóficos, da idéia de Direito Natural neste escolástico medieval. Eu os convido então a fazer um exercício aqui, de seguir um pouco o pensamento de Tomás de Aquino comigo. Não entendo que esse pensamento seja definitivo, que ele tenha a última palavra sobre qualquer assunto. Eu acho que ele tem talvez a última palavra sobre alguns assuntos, mas só em razão da coerência dos seus argumentos e não por força de qualquer suposta autoridade derivando de uma aprovação eclesiástica.

Estamos falando sobretudo de filosofia. Não estou aqui como teólogo. Vocês ouviram algumas observações teológicas ontem, aliás muito pertinentes, muito interessantes. Vou falar enquanto filósofo, não pressupondo qualquer fé sobrenatural, qualquer apoio numa revelação divina, a não ser algumas referências colaterais; isso porque Tomás de Aquino era, sem dúvida alguma e  antes de tudo, um teólogo. Mas era um teólogo que escrevia também, no serviço da teologia, muito sobre a filosofia. Dessa forma, ele alçou, levantou a filosofia a uma perspectiva tão alta–especialmente nas suas reflexões sobre a natureza humana e sobre a natureza de Deus—que  dificilmente encontramos outro pensador que realizou um panorama tão exaustivo.

Ele, um pensador do século XIII, sem todas as diversões e distrações de hoje em dia, sem televisão, sem internet e sem a proliferação de informações apenas curiosas, conseguiu focalizar nas questões cruciais com tanto mais concentração e dedicação. Tomás de Aquino era um frade dominicano, que dedicava até cinco horas por dia à oração, e depois tantas outras ao estudo, à reflexão, à composição de seus livros, de seus comentários. Ele não tinha essas distrações que afligem tanto nosso estudo hoje. E por isso ele teve tempo para realmente aprofundar, apurar e depurar o pensamento sobre o assunto em pauta, até que algumas intuições, algumas conclusões aparecessem, que nós talvez nunca chegaremos a vislumbrar, nem a supor.

Por isso eu acho que posso oferecer, a título de um porta-voz de Tomás, algumas reflexões úteis para este fórum. A filosofia tem como tarefa principal, na minha visão–e acho que na visão dos grandes filósofos antigos e medievais, bem como de vários modernos–não de criar e proliferar sistemas e teorias em cima do nosso mundo e da nossa experiência, mas antes de elucidar nossa própria existência, nosso próprio mundo, nossa própria vida. Aprofundar, alargar e prolongar os pensamentos, reflexões que já estamos fazendo.

Todo dia estamos perguntando: Por que eu estou aqui? O que quer dizer isto? É verdadeiro aquilo que ele disse ou falso? Será que vou conseguir terminar minha formação ou não? Aonde eu estou indo? Todas essas questões cotidianas são já filosofia, em núcleo. A filosofia formal apenas alarga, aprofunda e prolonga–introduz método e ordem nessas cogitações já em andamento.

E, por isso, podemos fazer uma reflexão filosófica também a respeito do Direito Natural. Portanto, vou esforçar-me hoje para basear essa reflexão em nossa experiência, não pressupondo conhecimentos técnicos da filosofia. É muito fácil dar uma palestra altamente impressionante, a respeito da qual, as pessoas saem dizendo: “Nossa! Ele sabe muito, mas eu não entendi nada!”. Eu gosto de evitar esse tipo de palestra, muito comum no mundo acadêmico, seja aqui, seja na UnB, seja nos Estados Unidos, seja na Europa.

Esse assunto, Direito Natural, é vasto. Começaremos a discutir o que seja uma boa definição do Direito, depois uma definição da Natureza e, por fim, como podemos entender a união desses dois conceitos. Os palestrantes de ontem nos deram uma ótima iniciação, sobretudo histórica, da problemática, partindo do ponto de vista de um teólogo e exegeta, e depois de um jurista. Agora eu vou acrescentar uma reflexão filosófica, não histórica.

 Apesar de tratar-se de Tomás de Aquino, eu escolhi esse autor, não porque goste tanto da Idade Média (isso seria uma questão apenas de gosto ou de preferências culturais ou religiosas), e ainda menos por pensar que seria desejável voltarmos para a Idade Média, mas simplesmente porque achei nos seus escritos um pensamento tão profundo, tão abrangente e — sobretudo – tão aberto! Pensamento aberto! Por quê? Porque baseado no conceito fundamental do Ser, da existência. Abrange, desde suas primeiras abordagens especulativas, tudo aquilo que é, que era, que será, que poderia ser. Todos os seres passados, presentes, futuros e possíveis, como também comentários sobre as coisas impossíveis, constituem alvos do seu olhar sapiencial. É um pensamento inclusivo e não excludente. Por isso escolhi Tomás de Aquino, e vou nortear minha exposição especialmente nas duas estrelas polares de Natureza e de Direito.

Primeiro, quero assinalar que não vou falar de outras acepções e interpretações do Direito Natural, mas apenas do conceito tomista. Quero ressaltar as duas novidades que podemos ver na apresentação tomista do Direito Natural.

A primeira é a vinculação explícita, operada por Tomás, do conceito de Direito Natural às inclinações naturais do homem. Nem Aristóteles, com quem Tomás de Aquino tem muita afinidade e de quem ele tomou emprestado sua metodologia e muitos pressupostos importantes, havia feito tal aproximação. Tomás, quando aborda o assunto do Direito Natural, está pensando concretamente em mim, em você e nas nossas inclinações. Inclinações de todo tipo: inclinações do corpo, inclinações afetivas, inclinações da vontade, inclinações até da razão–todas as tendências que temos. Sabemos que a nossa vida é cheia de tendências. Acordamos todos os dias cheios de tendências, de inclinações, de aspirações. Elas constituem o ponto crucial para Tomás. Vamos ver por quê.

A segunda novidade na acepção tomista do Direito Natural é a sua não-vinculação com a vontade divina. Tomás de Aquino fala muito sobre Deus, a título de filósofo. Não é possível fazer muitas afirmações sobre Deus na filosofia, mas o pouco que se pode falar é muito precioso e importante. E Tomás, falando sobre Deus, chega a afirmar que, filosoficamente, é possível não apenas provar a Sua existência, mas também que Ele possui um intelecto e uma vontade, a saber, que Ele é pessoal.

Não vou abordar questões teológicas sobre as três Pessoas da Trindade; isso realmente seria Teologia de uma alegada inspiração sobrenatural. Pertence a um outro aspecto, a uma outra abordagem da reflexão humana. Mas que Deus é pessoal, Tomás chegou a esta conclusão filosoficamente, já na sua metafísica. Ora, o Direito Natural Tomás vincula a Deus, não através da Sua vontade. Na sua visão, as coisas que  tem que ser feitas, pelo Direito Natural, não ganham sua força de ser exigências, pelo mero fato que Deus as mandou. Não é isso. Ele vincula o Direito Natural ao intelecto divino, quer dizer, a capacidade mental de conhecer, de entender de Deus. Vamos ver o quanto isso também tem a sua importância no desenvolvimento do nosso tema.

Antes de continuar, deixem-me apresentar um princípio fundamental de toda a visão filosófica de Tomás de Aquino, que vai facilitar bastante a nossa chegada à sua teoria do Direito Natural.  Este princípio é a criação.

Tomás, no mundo filosófico, é conhecido como o grande filósofo da Criação. Essa noção denota a produção de algo, de qualquer coisa, ou de todas as coisas neste caso, a partir do nada, sem qualquer matéria prima, sem qualquer coisa de quê ou com quê o resultado tenha surgido. O mundo é criado, nós somos criados, segundo Tomás, diretamente por Deus, sem qualquer matéria preexistente ou qualquer intermediário.

Não vou me alargar sobre isso aqui, mas quero realçar apenas um aspecto desta doutrina da criação, que é muito relevante e muito consoante com as ciências contemporâneas–estou falando da física sobretudo, da astronomia, da química e da biologia–isto é, o fato que nossa criação, a criação do nosso mundo, do nosso universo é um mundo, não são todos os mundos, não são dois mundos, é um mundo que tem um semblante, um rosto, uma fisionomia própria e leis específicas. A velocidade da luz, por exemplo, é uma; as ondas eletromagnéticas são tais e tais. As folhas são normalmente verdes, o sangue é vermelho. Poderia ser de outra forma, mas é assim. Nosso mundo está cheio de especificidade. É um mundo muito específico, muito particular.

Tomás abordou também a questão que hoje é muito popular, a saber: será que existem outros mundos, outros universos, outras dimensões, além deste universo? Ele aceitou a possibilidade. Mas no final das contas, só sabemos que este cosmos nosso é um muito específico, tem quase uma personalidade, um caráter seu. Se Deus tem outros, teve outros, terá outros, poderia ter outros, isso não sabemos; Deus não falou sobre isso, diz Tomás, e portanto não nos interessa tanto, pelo menos não lhe interessou muito. Ele tinha trabalho suficiente para preencher todo seu tempo procurando entender este mundo aqui. Importante que é um mundo específico.

Existe um autor norte-americano, Stanley Jaki, um teólogo, filósofo e físico conceituado em suas áreas, que defende a tese de que a ciência moderna, com toda a sua glória, com todo seu poder, nunca teria surgido se esta doutrina da criação e outras doutrinas ligadas à pregação cristã na Idade Média–Encarnação, Sacramento, Ressurreição etc., que têm tanto a ver com o corpo, com a matéria, com a natureza–se essas doutrinas, especialmente a da criação, não tivessem sido ensinadas. Nós teríamos continuado como os egípcios, como os indianos, como os babilônios, como todos os povos primitivos, como os povos das religiões asiáticas, com uma visão estática do nosso mundo. Nosso mundo seria facilmente confundível com o divino, tendência especialmente marcada no hinduísmo, para o qual mundo é, de uma certa maneira, o lado exterior de Deus. E Deus, o lado interior do mundo, não seria realmente distinto do mesmo mundo.

Pela doutrina da criação, Deus criou porque Ele quis. Por quê, exatamente, não podemos saber. Ele quis este mundo e que o mundo fosse assim como é. Ora, se Ele quis as coisas assim como são (pelo menos, nas suas essências e propriedades) e teve um plano e se este mundo é um mundo particular, a curiosidade humana se desperta e quer saber mais sobre o mundo ao seu redor, como expressão dessa intervenção livre e intelectualmente planejada de Deus.

Neste contexto criacionista, você não está “violando” a Deus, investigando a natureza das coisas. Ela é um dom que Deus criou e você está olhando para entender melhor o que ela está dizendo. Jaki defende esta tese mas ele também apóia o que eu estou tentando demonstrar, isto é, que nosso mundo, o mundo da nossa experiência, o mundo que a ciência moderna está analisando e catalogando cada vez mais, é um mundo cheio de essências, de coisas que são assim, assim e assim.

Nas férias, fiz uma viagem ao norte do país. Viajei de barco de Manaus a Belém, um barco regional, não um barco turístico, e fiz vários passeios ecológicos. Fiquei impressionado com a riqueza e a biodiversidade de nosso mundo. Estava pensando o tempo todo, como filósofo, como a ciência trata cada uma dessas coisas como algo que tem a sua própria estrutura, isto é, sua própria essência,  natureza. Isto apóia,  sublinha e secunda a visão da criação de Tomás de Aquino.

Agora, o que é uma essência? Vamos tentar identificar depois o conceito de natureza. Essência é o que uma coisa é. Se eu falo que é devido à essência do cachorro que ele late e não mia, como faz, por sua vez, o gato, conforme determina a sua essência. Esses dois bichos são tão diferentes na minha experiência; o gato é essencialmente diferente do cachorro, com comportamentos tão distintos, mesmo opostos. Com certeza, eles têm algo em comum, eles são quadrúpedes etc., mas há algo que diferencia o gato tão profundamente do cachorro que eu, por exemplo, gostaria de ter um cachorro em minha casa e não gostaria de ter um gato. Há outras pessoas, claro, que teriam preferências inversas.

Tomás de Aquino e também Santo Agostinho teriam feito uma reflexão sobre isso: cada ente reflete uma idéia na mente de Deus, etc…; poderíamos seguir essa via de reflexão também, mas o tempo não permite. Quando os biólogos estudam os bichos, as plantas e os químicos os minerais, mesmo não falando explicitamente de essências, é claro que estão pressupondo que elas existam. Se não, o discurso científico não teria sujeito.

Então, o que é a natureza? Natureza é a mesma coisa do que essência em filosofia–só com uma pequena diferença de visualização. Quando se fala da natureza de uma coisa, p. ex.,  “é natural a ave voar e não é natural a tartaruga voar; não é próprio à natureza da tartaruga voar, e é da natureza da ave voar”. Preferimos, nesses casos, usar mais a palavra natureza do que a palavra essência, porque natureza tem uma implicação de movimento, de atividade. A palavra vem de nasci, em latim, que traduzimos por nascer, em português. Natureza é aquilo que nasce, que resulta de um nascimento, que implica sempre em um vir-a-ser.

Então, quando eu falo sobre a natureza humana, em vez de essência humana, estou falando da essência humana como princípio de operação, princípio de atividade. Por isso, me referindo a alguém que esteja abusando de seu corpo de qualquer forma, eu digo: “não é natural agir assim!”, “não é natural fazer isso!”, mas não digo: “não é essencial fazer isso”. Não é natural para o homem de boa saúde passar o dia deitado no chão. “Isso não é natural! Você tem duas pernas, não está doente, então levante-se!”. É natural para o homem estar de pé. É natural para homem comer pela boca e não pelas narinas. É possível comer pelas narinas. É possível, fisicamente, no caso de certas doenças, mas não é natural fazer isso. Todo mundo vê isso; não dizemos: “não é essencial fazer isso”, mas “não é natural fazer isso”, “pára com isso, não é natural!”. Então, natureza é a própria essência de uma coisa, mas vista como princípio de suas operações.

Agora, o que é Deus, na visão filosófica de Tomás de Aquino? Há poucas coisas a dizer sobre Deus, mas essas poucas coisas são profundas. E, por favor, tirem das suas cabeças toda imagem de “pai bondoso, com barba”, todas essas imagens são inevitáveis–somos humanos e precisamos de imagens para dar a partida ao nosso pensamento–,mas o filósofo tem que prescindir de sua imaginação se ele quiser pensar. Quando Tomás pensa sobre Deus, não há nada de sentimental aí, não existe nada, digamos, de imaginativo, nada que poderíamos pintar e até cantar. Deus é eterno, infinito, absoluto, poderoso, onipotente…tem toda uma série de propriedades, de atributos filosóficos que não são nada românticos. Não é um Deus a quem você gostaria de rezar, este Deus filosófico. E no final, Tomás faz uma pergunta: Deus, possuindo todas essas coisas, será que Ele é feliz?

E Tomás conclui seu tratado sobre Deus dizendo: Sim, Ele é muito, muito feliz. No final das contas, felicidade é a maior das perfeições. Mas, a rigor, não é correto falar assim. Ele não é feliz, Ele é a felicidade! Deus não é justo, Ele é a Justiça! Deus não é eterno, Ele  é a Eternidade! Ele não é infinito, Ele é a infinitude! Quer dizer, temos em Deus, segundo a visão metafísica, filosófica de Tomás de Aquino, a coincidência de todos atributos: tudo aquilo que está em Deus é Deus. Deus não tem nada. Ele é tudo.

Aquilo que nós visualizamos, quando falamos sobre a natureza e as atividades, de qualquer ser vivo–em especial do homem–pode ser entendido, mediante as considerações seguintes: Não entramos neste mundo e sentamo-nos e existimos: “Ah! O que você está fazendo aí?”. “Estou existindo!”. Não. Começamos a crescer, começamos a mexer com todos os membros. O bebê é um movimento contínuo. Então, movimento. Para nós existirmos, temos que atuar, agir—em duas palavras: temos que fazer coisas. Quando fazemos um novo amigo, uma pessoa que não conhecemos, dizemos: “Quem é você?”, “eu sou Paulo, filho de tal pai e tal mãe”. Mas a segunda pergunta vem de imediato e com uma necessidade imprescindível:  “O que você faz?”. Isto é essencial. Se ele replicasse: “Eu não faço nada, não acredito em fazer coisas. Eu existo só. Eu sou Paulo”. Você diria: “Eu não posso te conhecer se você não fala sobre aquilo que você faz!”.

 “Ah! Eu estudo Direito”. Isso já diz muito. As coisas que você faz, são as maneiras pelas quais você existe. Você existe, desde que é um ser vivo, agindo, atuando, movendo-se. Isto é um pouco difícil, mas é bastante simples. Mas é por causa da sua simplicidade que é difícil. As coisas mais simples e mais imediatas em filosofia são sempre as coisas mais difíceis. Se você quer coisas fáceis, acessíveis, vamos ser complicados. Complicação é muito mais acessível do que a simplicidade. E Tomás tem um artigo na Suma Teológica sobre Deus que se intitula “De simplicitate Dei” (Sobre a simplicidade de Deus), bastante complexo, em que ele fala precisamente o que eu acabei de dizer. Em Deus, metafisicamente, tudo, a ação e o ser se identificam. Ele é a sua atividade. Muito mais adequado seria, se quisermos usar uma imagem, em vez de falar de Deus como se fosse uma montanha, uma pedra (e até a própria Bíblia fala de Deus usando a metáfora de uma pedra—evocando a sensação de fidelidade, permanência), falar sobre Ele como uma bomba atômica; como o universo, um segundo antes do ‘big bang’, a saber, uma concentração absolutamente incomensurável de força, de luz, de poder, de conhecimento, de amor etc. Tudo unificado.

A criação é composta. A primeira composição que constatamos na nossa vida é que existimos e  agimos. Vivemos e depois agimos, fazemos coisas. Não podemos existir sem agir! Não podemos existir sem atuar, sem nos mover. Esse estado é a definição da morte: quando você não se mexe mais.

Alguns de vocês estão dizendo: “Claro! E daí… o que o Sr. quer com isso?! Claro que eu tenho que agir para existir!”. Se você não foi tocado, atacado ainda por uma luz de intuição, continue assistindo. Porque isso é extremamente profundo. O homem, que é um ser vivo, existe, ele é, por causa de suas ações. Quem não age, não vive. Retenham isto, pois vamos voltar a essa idéia.

Então, voltamos à idéia da natureza. Por uma razão bem pontual, a tradição de Tomás de Aquino escolheu a palavra natureza para falar sobre este tipo de Direito que estamos analisando. Sabemos agora o que é a natureza. Natureza é a nossa essência, a essência da coisa, mas entendida como princípio de operação. Alguns dos mais espertos estão dizendo: “Ah, Professor! Falamos sobre a natureza de Deus também, e o Sr. acabou de dizer que em Deus tudo é um”. Sim, mas chegamos a conhecê-lo próprio Tomás trata disso–através da sua criação, através das suas obras. Não diretamente. Por isso, a palavra natureza também é válida falando de Deus, uma vez que Deus é conhecido apenas através daquilo que, segundo nossa perspectiva temporal e contingente, Ele  faz. Chegamos a aquela identificação de tudo em Deus só através de uma reflexão metafísica muito posterior a nossa constatação da existência dEle.

Agora, como a natureza e a atividade são dois aspectos de nossa existência, a nossa natureza tem também outra relação. Eu, por exemplo, sou um homem, tenho a natureza humana, mas eu não sou a humanidade. Eu tenho a essência, tenho a natureza humana, mas eu não sou a minha natureza. Mais uma vez: “E daí? Esta é uma coisa tão evidente! Claro, eu sou um homem, mas eu não sou a humanidade, tudo bem”. Para filosofar você tem que parar nessas coisas simples e ir fundo. Existe aí já, em núcleo, 20 volumes de filosofia. Há tomos escritos sobre isso, sobre a diferença entre a minha natureza e a minha existência, sobre o que quer dizer o fato de eu poder dizer: Eu não sou a minha natureza, eu não sou a minha essência.

 COM QUE DIREITO SE REJEITA O DIREITO NATURAL?

PARTE II

Prof. Dr. Scott Randall Paine

Então, o que é a essência ou a natureza humana para mim? É o plano da minha existência. Quando falo: “Eu sou um homem, eu sou um ser humano”, estou dizendo: “Eu existo, eu dou, apenas dentro dos limites da natureza humana”. Eu não sou cachorro, não sou anjo, não sou árvore, não sou mineral–tantas coisas que eu não sou. Eu sou um existente somente enquanto sou homem, enquanto tenho a natureza humana. Este é o plano que a nossa existência recebe. Nós somos dentro das fronteiras da nossa essência.

Agora, as nossas atividades, os nossos atos–sensação, digestão, todos os atos biológicos e também os atos livres, como a livre escolha, atos do raciocínio, do pensamento–essas atividades têm também um plano. Há o plano, o campo dos atos não livres, como a digestão, o crescimento, que são as famosas leis da natureza. Segundo as leis da natureza você cresce. Crescemos verticalmente os primeiros 20 anos da nossa vida (depois muitos de nós começamos a crescer horizontalmente nos anos restantes!). Mas esse crescimento apresenta certos limites, há certas leis que dominam isso, não são livres. A digestão também é natural. Graças a Deus não precisamos sentarmos depois do almoço e digerir conscientemente nosso almoço. São coisas automáticas, coisas naturais, como nos animais, como nas plantas, e como no mundo puramente material.

Mas existem outros atos que não são automáticos; são os atos livres, que têm um nome especial: quando você faz uma coisa livremente, nós falamos do agir, você está agindo, você está fazendo escolhas, você tem responsabilidade sobre estes atos. Agora, essas atividades livres que o homem pratico com a sua natureza, existindo na sua natureza humana, seguindo o plano da natureza humana, têm também de seguir um plano para chegar ao seu fim, à sua meta. E este plano é o Direito.

Estamos vendo que o Direito tem na origem do seu sentido uma significação super simples:  Diretamente, Reto, Direito.

Eu viajei nas férias de Natal para o Rio de Janeiro com um amigo que é do estado do Rio de Janeiro; eu estava dirigindo meu carro, e ele me guiando, porque eu não sabia as direções. Toda vez que chegava a uma bifurcação, ele dizia: “reto! reto!”. Eu virei para a direita—sendo um estrangeiro, as duas palavras soam muito semelhantes. “Por que isso?! Elas apresentam duas acepções no uso: reto quer dizer tout donit em francês;  em alemão, geradeaus, “straight ahead” em inglês; à direita, que eu ouvi, “reto”, pensei “Oh! Right! OK!”  À direita, mas à direita tem também esse sentido: isto é right isso é left; isto é right ; isso é wrong.  Em latim, rectum  e  sinistrum—o último querendo dizer também o mal, o diabólico, justamente o sinistro. Este episódio me propiciou uma reflexão filosófica a respeito da diferença entre direita e reto.

O homem tem inclinações na sua natureza que o movem a agir, a escolher tipos de comportamento. Existem também metas que correspondem a essas inclinações. Por exemplo, temos a inclinação para comer. Para alcançar essa meta você vai ter que usar a sua boca, que introduzir coisas na boca, que engolir. Há certas regras que ordenam essa atividade.  “Mas eu sou um homem livre, não tenho que usar minha boca!”. Um tal emancipacionista quer romper as cadeias que ligam as inclinações às suas metas. “Quero usar meu ouvido para comer. Eu sou um homem livre! A liberdade para mim é um bem supremo, eu não vou me curvar perante regras arbitrárias, ‘use tão-somente a boca para comer’– bah!”. Vemos um absurdo nisso, porque há uma maneira de se fazer determinadas coisas. Existe uma maneira de andar. Se quisermos andar, temos de usar a perna direita e depois a esquerda: direita, esquerda/direita, esquerda. Podemos inventar outras maneiras de fazer isso, mas acabaremos por inventar uma nova dança e não uma maneira de andar.

É claro que as ações mais físicas, mais biológicas têm seu caminho natural de chegar à sua meta, e portanto devem ser feitas da maneira mais direta possível. Existe o ponto A e quero ir até o ponto B, e a reta para andar, ou a reta para comer é seguir o caminho natural. Fazer a coisa naturalmente, e não de outra forma.

O Direito Natural mostra a maneira de orientar nossos atos surgidos das inclinações, de tal forma que eles cheguem às suas metas–nada mais. Exercer as nossas atividades de tal forma que elas cheguem a seus fins.

Nós somos criaturas não acabadas. Somos criaturas em trabalho, em desenvolvimento. Chegamos a este mundo totalmente necessitados, fracos, dependentes. Por quê o homem é tão dependente, mais que os outros animais, que, às vezes, em poucas horas depois de nascidos, já estão ativos, bastante independentes? Por quê o homem tem tantas necessidades, precisamos anos e anos para amadurecer, alguns precisam de 20 anos, alguns de 30 anos, alguns de 40 anos (alguns parecem nunca chegar aí!)?.. Mas biologicamente, pelo menos, temos um certo caminho, 18 anos parece ser a idade em que temos todas as capacidades orgânicas desdobradas e o cérebro pronto pra dirigir a vida mais independente e responsável.

A razão por essa longuíssima ‘gestação’ é que o homem é cheio de potências, de capacidades que têm de ser desenvolvidas, sobretudo as de seu intelecto e  sua vontade. Elas têm de ser formadas, abertas, desempenhadas, testadas. Precisamos muito trabalho para fazer isso, nós sabemos, assim toda a história da nossa educação, da nossa formação, do nosso amadurecimento. Mas quando chegamos a ser pessoas responsáveis, utilizando a nossa vontade livre e o nosso raciocínio por nós mesmos, reconhecemos que existem certas regras, normas, direitos e obrigações para chegarmos mais rápido e mais eficazmente ao fim de uma felicidade humana. A relação reta entre nossas potências (com suas inclinações) e suas metas (e, ultimamente, a meta da felicidade) é a lei, ou direito, na concepção de Tomás de Aquino.

O Direito indica, pura e simplesmente,  a maneira mais rápida de se chegar a seu fim. O que é um homem justo, por exemplo?  Vamos tomar um exemplo ético (o maior tratado ético de Tomás de Aquino, na Suma Teológica, é sobre a Justiça—acho que deveria ser leitura obrigatória na biblioteca de cada aluno de Direito, de cada advogado e juiz ainda mais, para não falar dos políticos). O que quer dizer justo? Justo é mais uma dessa família de palavras que querem dizer direito: justamente, just, juste (em alemão, richtig e Gerechtigkeit ). O homem tem que ser erigido, orientado, norteado, retificado; isso é o sentido rudimentar de Direito.

Na visão tomista da natureza humana, o homem tem uma certa natureza, tem certas inclinações–inclinação de viver, de preservar sua vida, de sentir prazer, de conhecer a verdade, de agir sem sofrer violência. Mesmo nas ruas de Brasília, eu constato que a maior parte das pessoas ao volante prefere viver do que morrer, por isso fica no lado a direita. Mesmo um colega meu que é advogado do suicídio, da legitimidade do suicídio, e que fala muito sobre isso, ainda não se suicidou. E sabe se defender quando se ataca a integridade física dele. Existe uma certa incoerência neste tipo de comportamento. Quando falamos sobre o homem justo, estamos falando apenas do homem que está se orientado o mais diretamente possível  ao seu bem.

E o que é o seu bem? O bem do ser humano é impossível de se definir pefeitamente. Esta é uma das coisas que não se pode, a rigor, definir – -as coisas mais importantes, mais próximas, mais filosóficas são infelizmente indefiníveis, como o ser, como o bem. Em termo delas que conseguimos definir outras coisas, menos universais e gerais. Mas o teste da experiência nos proporciona uma certeza de que resista tantas dúvidas. “Você quer o bem?”. “Sim, sim!” Mas o que é o bem? Tenho sede e tomo um copo d água. “Foi bom?”. “Foi bom, perfeito”. “Por quê foi bom?”. “Porque matou minha sede”. “Mas por que você quer matar a sua sede?”. “Para viver, porque eu quero viver. Viver é bom”. Então, o que é o bem? Quando alguém perguntou a Aristóteles–Tomás de Aquino também não podia ir mais longe do que isso– o que é o bem, ele respondeu: Bem é aquilo que todo mundo quer. Esta é a única definição que ele deu do bem. Parece redundante mas põe em evidência a certeza de uma experiência pré-racional que fundamenta toda a moral.

Quando eu cheguei ao Brasil, faz tantos anos, tive de aprender essa expressão nacional do brasileiro, que eu acho profundamente filosófica, “tudo bem”. Há pessoas que escrevem comentários sobre textos de Aristóteles, sobre textos da Bíblia. Eu pensei várias vezes em escrever comentários sobre estas duas palavrinhas que contêm, bem analisadas, toda a filosofia, em núcleo. Tudo, tudo: isto é, filosofia. A filosofia reflete sobre a totalidade das coisas, ela quer saber algo, qualquer coisa—o que chamamos de “princípios”–sobre todas as coisas, Essa é a filosofia teórica (lógica, cosmologia, psicologia, antropologia filosófica, metafísica, teologia natural que trata das coisas como elas são, independentemente da nossa vontade.

A outra parte principal da filosofia estuda as coisas que resultam da nossa vontade, os atos livres, daí a ética, a política, a jurisprudência, a considerações filosóficas na jurisprudência, mas também a filosofia da arte e da técnica. Eis os objetos da especulação prática: tanto bons atos, crimes, pecados, direitos, sanções quanto arte, artefatos, critérios estéticos e técnica. Todos eles não existem sem a vontade humana, ela é que produz esses objetos. Esta é então a filosofia que se chama filosofia prática. O que domina a filosofia prática é o conceito do bem. Fazemos coisas em vista de um bem. Não podemos nem começar a agir sem visar um bem.

Tente uma vez, um dia fazer o seguinte exercício: faça uma única coisa sem qualquer finalidade. Nem pode ter, subliminarmente, o intuito de fazer a coisa para atingir uma outra coisa. Você vai se achar perante uma tarefa impossível. Sempre há o por quê: faço-o porque o ato vai me trazer prazer ou qualquer satisfação, ou porque vai servir a um outro objetivo. Tentando fazer uma coisa sem motivação alguma, descobrimos que nem podemos dar sentido a um “fazer” sem o subordinar a um motivo. Quer dizer, na filosofia prática, nós descobrimos que o bem está sempre lá, nos desafiando, nos atraindo, nos hipnotizando às vezes, e estamos sempre agindo em vista desse bem. E Tomás diz coisas muitíssimo interessantes sobre isso mas não dá tempo para nos atermos a isso agora.

Quero dizer duas palavras sobre um assunto intimamente ligado com o tópico em pauta:  a liberdade. O Direito Natural é aquilo que deveríamos fazer para chegar direta, ou o mais diretamente possível, à nossa meta, ao nosso fim, ao nosso bem. Tudo isto é desencadeado, é despertado por um desejo, uma inclinação fundamental que o homem não pode deixar de ter. Há uma inclinação que não podemos não possuir. Este é o desejo mais fundamental no coração humano. Tomás diria que é impossível para o homem não querer isso, e este é o bem que chamamos de felicidade.

Todo o homem quer ser feliz. Tente procurar uma pessoa que diz: “Eu sou uma exceção. Eu gostaria sinceramente de ser miserável”. Com bastante facilidade poderemos desvendar esse desejo de miséria como uma perversão do desejo da felicidade. Ele acha, paradoxal e tragicamente, que a miséria vai fazê-lo feliz. Mas não podemos desejar a dor, mesmo o desejo da dor daqueles que sentem prazer na dor, porque é o prazer na dor que eles, patologicamente, querem, e não a dor enquanto tal.

Tomás disse uma coisa bastante surpreendente a respeito da liberdade: o homem não tem liberdade no seu desejo de felicidade, ele tem necessidade de atingi-la. Necessidade de aço, de ferro. Se você tentasse cumprir o ato da vontade contido nesta afirmação,-“Eu preferiria não ser feliz”,-você descobrirá que não tem a liberdade de fazer isto. Mas–e é aqui que a coisa fica interessante–você tem liberdade em outros assuntos por causa dessa necessidade. Eu, todo dia, quero ser feliz. “Quanta felicidade você quer?” “Tanto quanto eu possa atingir”. Ninguém quer ser razoavelmente feliz, não. Se for possível, gostaríamos de ser muito felizes. Muito, tanto quanto possível. Não quantificamos a felicidade. E esta é, a uma só vez, a riqueza da natureza humana e também o seu dilema. A inclinação fundamental da nossa vontade, rumo a essa felicidade, não tem limites, mas a felicidade, assim almejada,  também não tem existência, pelo menos neste mundo. O homem não acha algo que pode satisfazer perfeitamente esse desejo ilimitado de felicidade.

Por isso, segundo Tomás de Aquino, a vontade fica indeterminada, porque não encontra algo que tem que aceitar necessariamente. Se fosse aqui na minha presença a felicidade perfeita, eu teria que a capturar, não poderia resistir à minha tendência para com esse bem. Como o alcoólatra em relação à bebida, cada um de nós estaria em relação a essa felicidade presente. Simplesmente teria que a possuir, sendo a felicidade perfeita que queremos, necessariamente. Mas nós não a achamos, apesar, às vezes, de pensarmos que a tenhamos encontrado.

Por favor, não confunda seu namorado, sua namorada com esta felicidade perfeita, isto é um erro terrível, razão de muita infelicidade neste mundo. E também a sua profissão, o seu trabalho. Todo o mundo está cheio dessas “felicidades” incompletas. Mas o outro lado dessa ausência da felicidade perfeita é que ficamos livres de escolher entre café e chá, entre Coca-Cola e Pepsi-Cola, entre esta moça e aquela moça, este rapaz e aquele rapaz. Você tem escolhas, porque o objeto de nenhuma delas é perfeito.

Esta é a raiz da nossa liberdade de escolha. Podemos escolher porque temos uma necessidade de querer a felicidade completa. Há mais. Um corolário deste argumento é que a liberdade de escolha também é imperfeita. Escolhemos porque estamos à procura dessa felicidade. Queremos a felicidade, necessariamente. Mas é o caso de querermos escolhas enquanto tais?   É o caso que mais, e mais, e mais escolhas vão nos fazer mais, e mais, e mais felizes? Se a liberdade de escolha fosse a chave da felicidade, concluiríamos que mais escolhas significariam mais felicidade.

Então, a maior fonte de felicidade deveria ser o Word 2000. Porque você tem no Word 2000 opções, escolhas, eu posso escolher a noite, o dia inteiro com estas quantidades de opções. Você vai ao supermercado nos Estados Unidos para comprar cereal matinal e vai achar dúzias de escolhas. Isso faz o cliente feliz—o faz livre?  Uma coisa muito boa, aqui no Brasil é que vocês têm apenas alguns. Tem Cornflakes, Sucrilhos, algumas granolas—isto é, pode fazer uma escolha sem cair em uma crise de overchoice.

 Tomás fala sobre uma liberdade mais profunda do que a liberdade de escolha. Esta é a liberdade do uso pleno e sem obstáculos das nossas faculdades. Estamos livres quando usamos, desfrutamos aquilo que temos. Nosso corpo está livre quando ele pode se mexer. Nossa razão está livre quando ela pode pensar. Nossa vontade está livre quando ela pode finalmente abrir-se e possuir o bem que tanto almeja. Maior liberdade seria até no amor. Porque no amor perde-se a si mesmo.  Escapa até dessa prisão pessoal.

Esta é visão de uma finalidade da atividade humana. A finalidade natural para a atividade humana é de desenvolver, de desdobrar as capacidades humanas. E o Direito, a lei, a regra, as normas boas, naturais–quer dizer aquelas que realmente vêm da natureza–servem a esse fim. Esse é o sentido básico de Direito Natural.

O primeiro fundamento do Direito Natural é aquilo que se chama sinderesis. É o conhecimento principial do bem. O que é o bem? É aquilo que deve ser feito. O mal é aquilo que deve ser evitado. Se consultarmos nossas consciências, vamos achar que já possuímos essa certeza. Que o bem deve ser feito e o mal deve ser evitado não duvidamos; apenas temos dúvidas sobre o que é, num certo caso, o bem e o que é o mal. Isso é o fundamento do Direito Natural para Tomás de Aquino, porque esse é o princípio que guia as nossas atividades rumo ao desempenho pleno das nossas faculdades, das nossas potências.

Quem é infeliz? Se acharmos alguém infeliz, na maior parte das vezes, vai ser uma pessoa que não está usando as suas capacidades. Não sabe o que fazer. Está inerte, uma ferramenta não manuseada, um instrumento não tocado.

Esse é o comprovante empírico dessa doutrina de Tomás de Aquino sobre o Direito. Então o Direito e a natureza tem esses sentidos bem primários. Eu diria corriqueiros e cotidianos. Mas a sua união com o conceito do Direito Natural quase sumiu da filosofia predominante de nossos dias. Os filósofos de hoje quase não falam mais sobre Direito Natural. É mais popular no âmbito da  jurisprudência, da filosofia do direito, do que na filosofia enquanto tal. Mas eu penso que a perda do conceito do Direito Natural é a perda precisamente do laço, do liame, do vínculo entre a filosofia especulativa e a filosofia prática.

Nós vivemos hoje num mundo tão dominado pela técnica, pela tecnologia, pelas coisas que dependem da vontade humana, que foram produzidas pela vontade humana, tão inundados pela mídia, que presenciamos hoje em dia até vozes que falam do sumiço, do desaparecimento da filosofia especulativa; ou mais exatamente ainda, da sua irrelevância.

Não contemplamos mais simplesmente as coisas como elas são. Estamos criando, manipulando, produzindo—mas cada vez menos vendo. E esta interpretação supertécnica do mundo conduz facilmente a uma filosofia e a uma ciência que aprovam que o homem também poderia ser manipulado geneticamente e que podemos tomar em nossas mãos a nossa própria evolução, ignorando aquilo que deveríamos saber sobre a natureza humana filosoficamente, especulativamente.

Segundo essa concepção, a natureza humana depende de mim, depende de minha vontade, do que eu quero e do que eu faço. É essa visão e esse, digamos, temperamento filosófico, que está muito em voga desde o idealismo alemão, do tempo de Hegel, e especialmente de Marx, de Feuerbach, de Nietzsche. Esse temperamento se alimenta também de uma visão do Direito que exclui o Direito Natural. Quer dizer, o Direito positivo, passa a ser o Direito fundamental. Isso quer dizer que o Direito provém da vontade humana: o que eu quero, o que eu disponho.

Se esta  fosse a fonte do Direito, existiria apenas o Direito positivo. Positum, em latim, quer dizer posto, colocado pela vontade humana.  Como a palavra utilizada para Direito em alemão das Gesetz, aquilo que foi posto, estabelicido. Eu acho que o Direito Natural é tão importante que os Srs. devem estar bem informados sobre sua teoria, filosoficamente, na exposição de Tomás de Aquino. Uma exposição, aliás, muito geral. Mas são os conhecimentos principiais—conhecimentos de princípios—que são tão importantes para um discurso filosoficamente coerente, e princípios são, por definição, gerais e universais.

É crítico esse vínculo entre as nossas inclinações e as nossas metas, que é o direito, o caminho direto. É também crítico o laço entre a filosofia especulativa, aquilo que sabemos sobre o mundo, sobre a nossa natureza, sobre as suas exigências, as suas inclinações e aquilo que nós deveríamos fazer e deveríamos evitar, pelo fato de sermos de uma certa forma, por causa de nossa natureza.

Mesmo na filosofia especulativa, hoje em dia, o conceito da natureza humana está em crise. Há pessoas que dizem que não faz mais sentido falar sobre a natureza humana. Que a natureza muda. Certas interpretações da teoria da evolução conduzem a esse conceito. Mas, no final de contas, continuamos tratando a natureza humana como se ela fosse uma certa coisa, como o gato, o cachorro.

Este meu apelo para voltarmos a valorizar a filosofia especulativa gostaria de fazer mesmo num estudo dirigido ao Direito. Familiarizar-se com a boa História da Filosofia, para saber que, por detrás dessas atitudes jurídicas, políticas, práticas, muito em voga hoje, existe uma genealogia ideológica. São idéias ancestrais, idéias-avós, que estão conduzindo a certas conclusões. Conclusões que podem ser boas e que podem ser más. Mas desconhecer a história de como chegamos a essas conclusões, isso é triste.

Então, gostaria, para concluir, tendo falado sobre o Direito e a natureza, fazer uma pequena observação sobre a palavra que utilizamos para falar sobre aquele que não consegue ir diretamente à meta. Existe uma palavra, hoje em desuso, pelo menos na filosofia, somente se a usa na religião: pecado. Hamartia em grego e peccatum em latim, traduzidos por pecado, tem o sentido original de errar, não acertar no alvo. Como o arco e a flecha. Quando não se atinge o alvo, peca-se. Não é poder dizer apenas “não faça isso”, no sentido moralizante do pecado. Pode-se falar do pecado no sentido filosófico e teológico. O termo tinha o sentido, originalmente: caso continue essa tendência, nunca se chegará a seu fim. Só isso. Esses conceitos perderam, ao longo do tempo, o seu conteúdo original, que era (e ainda é, para os filosoficamente atentos) muito prático, muito simples, muito acessível e muito profundo.

Então, espero que essas observações e reflexões sobre Tomás de Aquino abram alguns caminhos para refletir mais profundamente sobre o Direito Natural. Peguem bons livros. Quem quiser, procure a Suma Teológica de Tomás de Aquino, primeiro volume da segunda parte. A segunda parte tem dois volumes. O primeiro volume da segunda parte, da questão 90 em diante trata da Lei, do Direito, da regra e de todas essas coisas. São muito luminosas. Quase tudo o que eu apresentei aqui, tirei de lá. Existem exposições também numa literatura secundária.

                   Muito obrigado.

 A palestra acima (Partes I e II) foi proferida pelo Prof. Dr. Scott Randall Paine (UnB), no auditório do UniCeub, Brasília, no dia 31 de agosto de 2001, no Fórum de Direito Natural organizado pela Frente Universitária Lepanto e pelo Diretório Acadêmico de Direito.

Prof. Dr. Scott Randall Paine (UnB)

[email protected]

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