O PAPA, OS JOVENS E AS “DOENÇAS MENTAIS”.

 

Heitor de Paola

Queridos educadores, para que a disciplina adquira o selo da liberdade é necessário um docente que saiba ler a inquietação como linguagem, desde a busca que implica em movimento físico, o de nunca ficar quieto, passando pelo permanente perguntar, até a do adolescente que tudo questiona e replica, inquieto por outra resposta.
Cardeal Jorge Mario Bergoglio,  Arcebispo de Buenos Aires, em ‘Mensaje a las comunidades educativas’, 23 de abril de 2008.

Um diálogo entre dois jovens, ambos em torno dos 12-15 anos:

A – Quem é o teu psiquiatra?
B – Dr. X, e o teu?
A – Dr. Y, ele é um barato! Eu tomo Ritalina e você?
B – Sai desta, eu estou com Zoloft e Effexor, quando eu tomo me dá um barato incrível! Fico outro, cara!
A – Minha irmã toma Zoloft, mas já tomou Prozac.
B – O meu irmão também.

Este diálogo não se passou num livro de Aldous Huxley, mas entre estudantes de um colégio secundário de elite numa metrópole do que já se pode chamar de Brave New World. O professor que me relatou horrorizado disse ainda que isto é um fato comum nos colégios, até com crianças pequenas. Os medicamentos são do grupo chamado Inibidores Seletivos da Recaptação da Serotonina (Selective Serotonin Reuptake Inhibitors – SSRIs) ou do Metifenidato (Ritalina).

 

Tudo começou nos EUA com a invenção de novos diagnósticos cuja existência real é no mínimo dubitável, senão completamente falsas. Estão incluídos há quase vinte anos no Manual Estatístico de Perturbações Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders-lV (DSM-IV) da American Psychiatric Association, 1994). Tais diagnósticos pertencem ao grupo chamado de comportamentos inadequados e falta de disciplina (Disruptive Behavior Disorders – DBDs) e incluem Distúrbio do Déficit de Atenção (ADD, Attention deficit disorder), geralmente acompanhado de hiperatividade: Distúrbio do Déficit de Atenção/hiperatividade (Attention Deficit Hiperactivity Disorder – ADHD). O DSM-IV distingue entre dois tipos de ADHD, o primeiro caracterizado principalmente por desatenção e o segundo por impulsividade-hiperatividade.

Aqueles que advogam a medicação para crianças geralmente vêm a ADHD como uma ‘doença mental’ específica de causa genética e bioquímica. Como Gerald Golden (1991) observou: “O comportamento é visto como perturbado e inaceitável para pais e professores e a criança fica socialmente incapacitada como resultado do próprio diagnóstico” (1). Na verdade, faz-se um diagnóstico ex post facto: por desobediência ou dificuldade momentânea de aprendizado é feito um diagnóstico de doença mental – que leva a um tratamento medicamentoso – e “drogas psicotrópicas prescritas para crianças em idade escolar causam comportamentos violentos”, como disse o psiquiatra britânico David Healy (2). E prossegue:  “Estamos dando às crianças drogas por estarem passando por estágios críticos de desenvolvimento e, como sociedade, estamos as submetendo a uma vasta experimentação e ninguém sabe realmente quais serão os resultados”.

O problema está exatamente aí: crianças perfeitamente normais, apenas menos atentas e/ou mais agitadas e bagunceiras do que as demais são levadas a tratamentos psiquiátricos por causas as mais diversas. Todas, no entanto, estão ligadas de uma ou outra forma a um conceito mutante de família no qual os filhos somente são vistos como benesse enquanto são totalmente dependentes dos pais. A partir do momento em que tentam exercer certa independência, geralmente quando começam a caminhar, comer com suas próprias mãos e a falar, se tornam empecilho. É nesta fase dos primeiros anos que muitas vezes os pais se separam, mas mesmo que não o façam resistem enormemente aos passos da criança rumo à conquista de sua própria liberdade.

Pais e mães cada vez mais ocupados são pródigos em encher o dia da criança de atividades que as mantenham fora de casa até a exaustão. Não é de admirar que se tornem irrequietas, irritadiças e até agressivas, porém não em grau patológico. Mas a frase “você precisa se tratar” tornou-se uma panacéia generalizada e pior, “‘as companhias farmacêuticas fabricam estas drogas com a única intenção de ganhar dinheiro e existem inúmeros problemas quando decidem empregá-las em crianças. Muito poucas têm sérios problemas que justifiquem o tratamento com pílulas como estas SSRI com os grandes riscos que elas ameaçam”. As drogas tornam as crianças agressivas e hostis. “Crianças usando SSRI são mais suscetíveis de machucar outras crianças na escola e podem se tornar suicidas”.

Mas não me limito a criticar a psiquiatria, mas também à busca atabalhoada de tratamentos psicológicos os mais variados. Como o tratamento psicoterápico de crianças é muito trabalhoso, geralmente são os recém-formados, sem nenhuma experiência, que se arriscam. Como lhes faltam conhecimentos para avaliar com precisão a necessidade ou não de tratamento, topam qualquer parada. Uma psicanalista infantil de larga experiência com pós-graduação em Londres me disse certa vez que de todas as crianças que ela via em entrevistas diagnósticas, apenas uns 5% precisavam realmente de tratamento. Na maioria dos casos não havia necessidade alguma e em muito eram os pais que precisavam. Mas, infelizmente, a grande maioria ia para outros colegas que, por ganância ou incompetência, aceitavam “tratar” as crianças.

Seja medicamentoso, seja psicoterápico, um dos maiores riscos destes tratamentos é a iatrogenia (3).

Sei por experiência própria: fui destas crianças desatentas, agitadas, um adolescente confuso, rebelde – quase fui expulso dos colégios e tomei várias suspensões – o fim da adolescência e início da vida adulta não foi muito diferente: apenas a rebeldia tomou o rumo ideológico e tornei-me comunista, discutia com os adultos. Acabei preso, causando enormes angústias aos meus pais. Felizmente eles nunca me viram como um “doente mental”, mas apenas rebelde. Nasci na época certa, não existiam estes “diagnósticos”, criei meus filhos assim e faço o possível para que eles criem os seus da mesma forma.

Por isto, mesmo sendo da área psi, compreendo melhor – e me sinto mais compreendido – pelo Papa:

Na experiência pedagógica cotidiana constatamos que as “crianças são inquietas”. Esta expressão traz em si diversos significados. Em um plano mais superficial a assimilamos ao disciplinar: as crianças fazem confusão e então pensamos em medidas que reprimam a espontaneidade dos alunos. Deve-se pôr limites, todos estamos de acordo, mas que eles não sejam impedimento para o desenvolvimento daquela outra inquietação que põe no caminho, afogando a esperança.

O disciplinar é um meio, um remédio necessário ao serviço da educação integral, porém não pode se converter em uma mutilação do desejo, assim como o entende Santo Agostinho, não como tendência à posse, senão como o que “ocupa espaço”. O desejo se contrapõe à necessidade. Esta cessa ao ser culminada a carência o desejo – ao contrário – é presença de um bem positivo e sempre se acrescenta, se instrumentaliza, põe em movimento a “mais”. O desejo da verdade procede “de encontro em encontro”, o disciplinar não deve cortar as asas da imaginação, da fantasia saudável ou da criatividade. Estabeleço um problema: como integrar disciplina com inquietação interior? Como fazer para que a disciplina seja limite construtivo do caminho que uma criança tem que empreender e não um muro que a anule ou uma dimensão da educação que a castre? Queremos crianças “quietas” pode dizer um educador behaviorista… mas eu os quero inquietos em sua ânsia, em suas propostas, responderá um humanista. Uma criança “inquieta” neste último sentido é uma criança sensível aos estímulos do mundo e da sociedade, uma criança que se abre às crises às quais a vida a vai submetendo, uma que se rebela contra os limites mas, por outro lado, os reclama e os aceita (não sem dor) se são justos. Uma (criança) não conformista com os clichês culturais que a sociedade mundana lhe propõe, uma criança que quer aprender a discutir… e assim poderíamos continuar (4).

Os psicopedagogos teriam muito a aprender com o Papa, não fosse a psicopedagogia inventada pela “preocupação com a produtividade e com tudo o que atrapalhava a possibilidade de produzir, nos albores da era industrial”. Segundo Laura Monte Serrat Barbosa (5),

“As dificuldades de aprendizagem passaram a ser foco de atenção, e a Medicina começou a estudar a causa dos problemas e suas possíveis correções. A primeira guerra mundial, em andamento na época, oferecia a oportunidade de se descobrir, no cérebro dos guerreiros atingidos, a relação das áreas cerebrais danificadas com as funções que apareciam prejudicadas. (…) No final do século XIX, educadores, psiquiatras e neuro-psiquiatras começaram a se preocupar com os aspectos que interferiam na aprendizagem e a organizar métodos para a educação infantil. (…) O movimento europeu acabou por originar a Psicopedagogia, enquanto que o movimento americano proliferou a crença de que os problemas de aprendizagem possuíam causas orgânicas e precisavam de atendimento especializado, influenciando parte do movimento da Psicologia Escolar que, até bem pouco tempo, (…) determinou a forma de tratamento dada ao fracasso escolar”.

O alerta do Papa servirá para impedir que nos tornemos “uma nação sob terapia”, como denunciado por Christina Hoff Sommers & Sally Satel em One Nation under Therapy: How the Helping Culture is Eroding Self-Reliance? Ou pior ainda, seguiremos os passos do famigerado The UN Plan for Your Mental Health?

Voltarei a estes assuntos.

Notas:

[1] Peter R. Breggin, M.D. & Ginger Ross Breggin, em The Hazards of Treating “Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder” with Methylphenidate (Ritalin)

[2] Medicamentos e sua relação com os massacres nos EUA, ver igualmente Fabricando pequenos assassinos e Antidepressivos e violência: uma investigação.

[3] Iatrogenia refere-se a um estado de doença, efeitos adversos ou complicações causadas por ou resultantes do tratamento médico. Embora seja usada geralmente para se referir às consequências de ações danosas dos médicos, pode igualmente ser resultado das acções de outros profissionais médicos, tais como psicólogos, terapeutas, enfermeiros, dentistas, etc. Além disso, doença ou morte iatrogénica não se restringe à medicina: psudo-medicinas alternativas principalmente as orientais, também podem ser uma fonte de iatrogenia.

[4] Trechos selecionados da Mensaje a las comunidades educativas, de 23 de abril de 2008 pelo então Arcebispo de Buenos Aires, Cardeal Jorge Mario Bergoglio, hoje S.S. Papa Francisco. Tradução: Graça Salgueiro

[5] www.uesc.br/cpa/artigos/historia_psicopedagogia.rtf

Heitor de Paola (www.heitordepaola.com) é escritor e comentarista político, membro da International Psychoanalytical Association e Clinical Consultant, Boyer House Foundation, Berkeley, Califórnia, e Membro do Board of Directors da Drug Watch International. Possui trabalhos publicados no Brasil e exterior. É ex-militante da organização comunista clandestina, Ação Popular (AP).

Fonte: http://www.midiasemmascara.org/artigos/cultura/14572-o-papa-os-jovens-e-as-doencas-mentais.html

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