André Gonçalves Fernandes
30/09/2012
Quando se abordam temas controversos, como pena de morte, aborto, liberdade de expressão, laicidade, ou se debatem assuntos que envolvam o agir humano em sociedade, como as regras de trânsito ou o direito de greve daqueles que prestam um serviço público, costumeiramente, faz-se, direta ou indiretamente, uma referência à ética: isso não é ético, aquilo exige uma atitude ética ou a ética foi desrespeitada.
Toda vez que criticamos uma ação ou uma omissão com base nessa referência, implicitamente, estamos atribuindo uma força normativa à ética. Ou seja, a ética seria uma espécie de manual de instruções, cujos princípios deveriam sempre indicar um ou mais caminhos para nossas ações. Mas onde reside, então, aquela força normativa: na natureza ou na razão?
Na razão, mas isso não significa que a natureza não tenha nada para contribuir nesse sentido, desde que se precise exatamente o que compreendemos por natureza e, então, poderemos falar de uma ética natural. Muitas vezes, a natureza é vista como um ramo da biologia: esse importante campo do saber contribui em muito para nosso entendimento acerca da natureza, mas ela não se resume a uns processos causais, como essa sequência de aminoácidos que produz aquela proteína ou que a união entre o gameta masculino com o gameta feminino produz o óvulo.
Tenho a impressão de que nossa razão fica inquieta se não acrescentar uma ideia de sentido para tais processos, independentemente de quais sejam. O saber sobre a natureza não pode se limitar a um saber causal, mas deve apontar o sentido dos processos vitais.
A referência a um sentido já nos introduz num terreno eticamente relevante. Não consigo enxergar a realidade como um conjunto de fatos vazio de valor e de sentido: o sentido da natureza, de seus processos vitais, é servir à vida boa de todos os seres vivos. As contribuições de Darwin para o pensamento evolutivo acabam por privilegiar o processo sobre a substância e a consequência lógica disso é que o pensamento volta-se para as espécies como se fossem tão somente uns passos adiante numa cadeia evolutiva infinita.
Mas cada espécie, mesmo no âmbito evolutivo, é um fim para si mesma. Com muito mais razão essa afirmação é aplicável à espécie humana, que não é apenas um fim para si mesma, mas, como sempre nos lembra Kant, cada homem dessa espécie é um fim em si mesmo.
Resolvida a questão sobre o sentido normativo dessa ética natural, de que maneira ele se harmoniza com as múltiplas tendências humanas?
As inclinações ou sentidos, como a fome, a sede e o cansaço, por si só, não são suficientes para dirigir uma conduta tão complexa como a humana: estou com muita fome, vou até o restaurante, mas não ponho, no mesmo prato, a entrada, o prato principal e a sobremesa. Sirvo-me em pratos distintos e, depois, alimento-me numa certa sequência. Agir bem, logo, requer introduzir ordem em nossas atuações e desejos e, para isso, devemos perguntar para onde nos levam nossas inclinações naturais, antecipar seus fins e dar o devido valor a cada coisa.
Isso é obra da razão e praticamos esse processo diariamente: experimentamos a atração sobre um objeto (livro), examinamos e, depois que lhe atribuímos um valor, compramos ou descartamos. Ou mesmo deixamos para ser realizado num outro momento.
Esse processo, implícito em nossas decisões, demonstra que nossa conduta não está exclusivamente determinada por nossas inclinações e que nossas inclinações levam-nos a propor objetivos nas mais variadas situações. Escolho descansar paraterminar uma tarefa e escolho poupar para que meu filho tenha uma boa educação formal.
Assim, as ações concretas que se elegem com vistas a um fim determinado (descansar e poupar) são um modo de plasmar na ação o próprio fim e são, de certo modo, uma antecipação, por meio daquela ação, do bem escolhido como fim (entrega da tarefa e educação formal).
Quem descansa para terminar uma tarefa já está terminando sua tarefa e quem poupa para a educação do filho já está possibilitando a formação dele. Desta maneira, a ação humana organiza-se para formar um todo dotado de sentido e para além do império dos sentidos. Com respeito à divergência, é o que penso.
André Gonçalves Fernandes é juiz de direito e professor do CEU-IICS Escola de Direito ( [email protected])