Valter de Oliveira
1. Introdução
Em meu último artigo aqui no site (“Adeus 2016!”*) perguntei se a atual crise brasileira seria resolvida com novas eleições. Minha resposta é negativa. Afinal, disse, o sistema político é o mesmo e os parlamentares criticados também são os mesmos. Assim, em vez de abraçarmos uma proposta que não tem guarida na Constituição e não vai realmente melhorar as coisas, precisamos ter outra atitude. Completei:
“Todos têm que lutar por verdadeiras reformas no País para minimizarmos futuros erros. Está mais do que na hora de, em vez de ficarmos atirando pedras, tentar formar melhor a opinião pública discutindo quais reformas são necessárias, quais são seus conteúdos e como devem ser implementadas. Para isso é necessário que apresentemos uma pauta daquilo que melhor pode ajudar a sociedade. É muito fácil ser do contra. O difícil é sair do maniqueísmo e do marasmo e fazer propostas”. Daí ter prometido desenvolver certos temas aqui no site. É o que passo a fazer.
2. Escolhas políticas e visão do mundo.
Tenho amigos e ex-alunos que querem me encaixar em determinadas correntes políticas ou econômicas. Minhas críticas ao PT e à esquerda mais radical faz com que me julguem pró partidos liberais (1), sociais democratas, conservadores ou “direitistas” (2). Na prática, é verdade, posso apoiar candidatos que recebem esses rótulos, apesar de discordar deles em muitos pontos.(3) Por princípio não voto no candidato de nenhum partido que oficialmente apoie causas contra o direito natural, sejam de esquerda, sejam de “direita”.
Na verdade, a simpatia de um homem por um partido, um candidato, um sistema econômico, um programa de governo, uma escola ética, dependem da filosofia, da visão de mundo que, conscientemente ou não, ele adota. A partir desse alicerce ele constrói suas análises. É por isso que, em muitos de meus debates, costumo dizer que se queremos uma discussão frutífera é preciso termos claro qual é a weltanschauung, a visão de mundo daquele com quem discutimos. Essa visão vai determinar, logicamente, como ele vê o homem, a sociedade, o Estado.
Minha perspectiva é baseada na filosofia realista que admite que o homem é capaz de conhecer a verdade. Dela vem a a constatação que há um direito natural radicado na própria natureza humana, válido para todos os homens. Da união dessa filosofia com os ensinamentos da Sagrada Escritura, em especial do Evangelho, nasce a Ética Social Cristã. São os pontos de apoio que tenho para analisar todas as coisas.
Nesta concepção o que é o ser humano? Um simples indivíduo, uma pequena e insignificante peça no imenso lego que é o universo?
Não. O homem não é fruto do acaso nem da pura evolução da matéria. Não é só um indivíduo. É uma pessoa, criado pela Onipotência divina, em um ato de puro amor, e que tem um destino eterno.
A filosofia nos ensina que não devemos confundir indivíduo e pessoa. O gato, por exemplo, é um indivíduo, não pode ser dividido. Já a pessoa é um “indivíduo racional” e tem uma alma imortal. No dizer de Tomás de Aquino: a pessoa “é o que há de mais perfeito em toda a natureza” (Suma Teológica I, qu. 29, art. 3). Somos abertos ao transcendente, ao infinito, a Deus. É a espiritualidade da alma humana que torna o homem “imagem e semelhança de Deus” (Gn 1,27) e confere-lhe sua dignidade própria.
Transcrevo, a partir de agora, em itálico, texto de Francisco Fernández Carvajal, historiador e Doutor em teologia, intitulado “Dignidade da Pessoa”, um dos princípios permanentes da Doutrina Social da Igreja (DSI). Dele o autor extrai toda uma série de consequências para a vida social, política e econômica.
(…)
“A DIGNIDADE DA CRIATURA HUMANA – imagem de Deus – é o critério adequado para apreciarmos os verdadeiros progressos da sociedade, do trabalho, da ciência…, e não ao contrário(6). E a dignidade do homem manifesta-se em toda a sua atuação pessoal e social, particularmente no campo do trabalho, em que se realiza o preceito do seu Criador, que o tirou do nada e o pôs sem pecado numa terra ut operaretur, para que trabalhasse (7) e assim desse glória a Deus.
Por isso, a Igreja defende a dignidade da pessoa que trabalha. É uma dignidade que se empobrece quando a pessoa é avaliada somente em função do que produz, quando o trabalho é encarado como mera mercadoria, e se valoriza mais “a obra que o operário”, “o objeto mais do que o sujeito que a realiza”(8), como diz expressivamente o Papa João Paulo II.
(…)
Estaríamos longe de uma visão cristã se mantivéssemos de alguma forma uma visão rebaixada, colada à terra: os indicadores mais fiéis da justiça nas relações sociais não são o volume da riqueza criada nem a sua distribuição… É necessário examinar “se as estruturas, o funcionamento, os ambientes de um sistema econômico não comprometem a dignidade humana daqueles que desenvolvem a sua atividade nele…”(9). Devemos ter presente que o critério supremo no uso dos bens materiais deve ser “o de facilitar e promover o aperfeiçoamento espiritual dos seres humanos tanto no âmbito natural como no sobrenatural”(10), a começar, como é lógico, por aqueles que os produzem.
A dignidade do trabalho expressa-se num salário justo, base de toda a justiça social. Mesmo no caso em que se trate de um contrato livremente pactuado, ou que o salário estipulado esteja de acordo com a letra da lei, isso não legitima qualquer retribuição que se combine. E se quem contrata (o diretor de uma escola, o construtor, o empresário, a dona de casa…) quisesse aproveitar-se de uma situação em que há excesso de mão de obra, por exemplo, para pagar um salário contrário à dignidade das pessoas, ofenderia essas pessoas e o Criador, pois elas têm um direito natural e irrenunciável aos meios suficientes para o seu sustento e para o das suas famílias, que está por cima do direito à livre contratação(11).
“É preciso ter presente que a principal finalidade do desenvolvimento econômico “não é um mero crescimento da produção, nem o lucro ou o poder, mas o serviço do homem integral, tendo em conta as suas necessidades de ordem material e as exigências da sua vida intelectual, moral, espiritual e religiosa”(12).
“Isto não significa negar a legítima autonomia da ciência econômica, a autonomia própria da ordem temporal, que levará a estudar as causas dos problemas econômicos, sugerir soluções técnicas e políticas, etc. Mas essas soluções devem submeter-se sempre a um critério superior, de ordem moral, pois não são absolutamente independentes e autônomas. Além disso, não se deve confiar em medidas puramente técnicas quando nos encontramos diante de problemas que têm claramente a sua origem numa desordem moral.
“É longo o caminho a percorrer até se chegar a uma sociedade justa em que a dignidade da pessoa, filha de Deus, seja plenamente reconhecida e respeitada. Porém, essa tarefa não é responsabilidade apenas de alguns, mas de todos os homens de boa vontade. Porque “não se ama a justiça, se não se deseja vê-la estendida aos outros. Como também não é lícito encerrar-se numa religiosidade cômoda, esquecendo as necessidades alheias. Quem deseja ser justo aos olhos de Deus esforça-se também por fazer com que se pratique de fato a justiça entre os homens”(13).
Devemos viver o respeito pela pessoa com todas as suas consequências e nos campos mais variados: defendendo a vida já concebida, uma vez que se trata de um filho de Deus com um direito à vida que lhe foi dado pelo Senhor e que ninguém lhe pode tirar; amparando os anciãos e os mais fracos, que devemos tratar com essa misericórdia que o mundo parece estar perdendo”.
Espero que as ideias e princípios expostos acima contribuam para que todos os leitores ainda não familiarizados com essa visão de mundo tenham o desejo de vir a conhece-la plenamente. Continuarei o assunto com outros artigos. Desde já agradeço as críticas e sugestões.
Notas do artigo:
* Adeus 2016 – https://www.olivereduc.com/politica/politicanacional/adeus-2016/
1. É o caso do PT e da esquerda mais radical que oficialmente apoiam o aborto, a ideologia de gênero e outros pontos da revolução cultural marxista. Rejeito também o liberalismo filosófico subjetivista e racionalista, especialmente o francês. Quanto a escolas econômicas tenho simpatia pela escola liberal austríaca em tudo aquilo que ela seja conforme a DSI.
2. Coloquei a palavra “direita” entre aspas porque na linguagem política corrente ela passou quase a significar não esquerdista. Basta ver que nossa esquerda tupiniquim coloca no mesmo balaio liberal, conservador, e até nazi-fascistas, o que descaracteriza completamente essas correntes.
3. É o caso das eleições quando, às vezes, seguindo o princípio ético do mal menor, votamos em um candidato ou partido que não nos satisfazem plenamente com o objetivo de impedir a vitória de um candidato que consideramos pior para a sociedade.
Notas do texto de Carvajal:
(…) (6) Alocução de João Paulo II, 15-VI-1982, 7; (7) Gen 2, 15; (8) João Paulo II, Discurso, 24-XI-1979; (9) João XXIII, Enc. Mater et magistra, 15-V-1961, 83; (10) ib., 246; (11) cfr. Paulo VI, Enc. Populorum progressio, 24-III-1967, 59; (12) Conc. Vat. II, op. cit., 64; (13) Josemaría Escrivá, É Cristo que passa, n. 52; (14) Josemaría Escrivá, Forja, n. 1012.
Extraído de “Falar com Deus”,Dignidade da Pessoa, São Paulo: Quadrante, 1990, p.59-61.