OS BÔNUS EXORBITANTES NO VESTIBULAR DA FUVEST: INCLUSÃO OU EXCLUSÃO?

 Sueli Caramello Uliano 

01/03/2009

A Universidade de São Paulo vem adotando desde 2006 um sistema de bonificação nas provas da FUVEST que, dizem, visa à inclusão social. De 2006 a 2008, os candidatos que cursaram todo o Ensino Médio em escola pública receberam um acréscimo de 3% em suas pontuações tanto na 1ª quanto na 2ª fase do vestibular, como bônus. Quem estudou em escola particular não tem direito a esse bônus. Em 2009, através de uma prova aplicada aos alunos do 3º ano do Ensino Médio público, o bônus chegou a até 12%.

A FUVEST não publica dados que permitam à sociedade saber quem foram os beneficiados, por isso dediquei-me à pesquisa por fora, garimpei informações. Escolhi o curso de Medicina, por várias razões, e investiguei os convocados. Estava chegando à assombrosa marca de 30% de aprovados com bônus quando minha filha me socorreu: na palestra de abertura da Faculdade de Medicina, informaram que foram 66 os beneficiados com bônus que entraram na Medicina Pinheiros, portanto 37% dos aprovados. E que em alguns casos o bônus passou de 10%.

Na edição 2100 da revista VEJA-São Paulo (18 de fevereiro de 2009), informa-se que o primeiro classificado na Medicina obteve 925 pontos dos 1000 possíveis e que, se lhe atribuíssem os 9% a que teria direito por ter feito o Ensino Médio em escola pública, o seu aproveitamento passaria de 100%. É uma informação relevante. Não quero questionar o mérito do João Francisco Ferreira de Souza, se o bônus foi computado na 1ª fase ou não, se merece o 1º lugar ou não. O que eu fiz foi virar o tabuleiro e encarar o jogo pelo lado contrário. Segundo informação do Curso Anglo, a nota mínima para entrar na Medicina Pinheiros foi 850. Penso que foi mais, pois sei que o candidato que ficou em 172º lugar alcançou 875 pontos (sem bônus!) e a Medicina Pinheiros convocou, na primeira chamada, até o 203º classificado para preencher as suas 175 vagas. Consideremos, no entanto, como válida, a informação dos 850 e apliquemos 9% de bônus. Teremos como resultado 926,5. Ou seja, o bônus representa mais do que a diferença entre o primeiro e o último classificado, o que já explicita a sua exorbitância. Calculemos agora qual seria a nota mínima para um aluno com 9% de bônus alcançar os sonhados 850. Bastariam 780. Para os não agraciados, 845 pontos não foram suficientes.

Ora, conheço o candidato que ficou em 612º. Fez 835,3 pontos. (Não tem qualquer chance de ser convocado. E também não tem condições financeiras para pagar uma faculdade de medicina. Mas isso não importa, pois ele estudou em escola particular, o que na USP de hoje é um estigma). Se o candidato com 835,3 já se classifica em 612º, em que posição se classifica o candidato com 780? Mesmo tendo em conta que o 612º foi alijado para essa posição por inúmeros beneficiados que lhe tomaram a frente, é de se supor que quem alcançou 780 pontos sem bônus ficou lá pela 1000ª colocação. E quem fez 780 pontos com bônus entrou na Pinheiros. Portanto, o curioso nesse processo não é que o primeiro classificado, com seu bônus, passe de 1000 pontos, mas que o milésimo da lista, ou perto disso, tenha sido guindado para os primeiros 200. E ainda é preciso ter em conta que alguns nem teriam ido para a 2ª fase, não fosse o bônus. Seria interessante e saudável para a democracia que a FUVEST publicasse uma lista de classificação sem bônus e outra com bônus para cotejá-las. E também as notas de corte sem bônus. Tenho certeza de que o resultado será muito significativo.

Também quero me estender na análise da já citada nota de corte que seleciona 3 candidatos por vaga para a 2ª fase. Atenho-me aos dados da Medicina que, todos sabem, é o top em nota de corte. Para os não beneficiados a nota de corte foi 77. Para os beneficiados, bastariam 71. Ora, o número de alunos por faixa de acerto forma uma pirâmide. Foram tantos os alunos que subiram com 71, 72, 73, 74, 75, 76 para 77, 78, 79 etc, que a nota subiu absurdamente para os que não eram beneficiados por bônus. Alguém pode imaginar a decepção de não ir para a 2ª fase da FUVEST, depois de ralar muito no cursinho? Eu tive de acalmar a minha filha, usando os argumentos que aqui exponho: com bônus, ela teria feito 80, mas por seu próprio mérito atingiu 74 e foi cortada, bem como os seus colegas que obtiveram 75 ou 76. Mas como replicar ao argumento: eles estão lá fazendo cursinho há anos!? O clima ficou muito ruim, com uns festejando e outros amargando o corte. O cursinho ETAPA, antes mesmo da divulgação oficial das notas de corte, até inventou uma história de que o bônus seria atribuído depois, que seriam convocados mais do que 3 por vaga. Balela. E minha filha agora se prepara para mais um ano de cursinho. Confesso que me corta o coração vê-la programar-se, renunciar a tudo o que não seja estudo, para ao final, competir num processo desleal, que beira a imoralidade.

Talvez os responsáveis por esse critério de seleção já sejam conhecedores dessas circunstâncias e talvez até as aprovem, considerando que a USP, ao optar por essa receita, está sendo justa com os menos favorecidos. Critério simplista: fica implícito que estudar em escola particular é condição social privilegiada. Será que as autoridades acreditam mesmo que esses candidatos beneficiados por bônus são oriundos de escolas públicas e, em decorrência, pobres? Oficialmente eles têm um certificado de Ensino Médio de escola pública, mas o conhecimento foi adquirido em anos de cursinho pré-vestibular feitos paralelamente. E pagos. Desde que a USP instituiu os 3% de bônus, a conduta de muitos alunos tem sido essa: matricular-se na escola pública e fazer cursinho desde o 1º ou 2º ano. Portanto, não trabalham. Esses desfavorecidos são, na verdade, muito espertos. Como o critério adotado tem graves brechas, basta utilizá-las. Há exceções? Sempre as há, mas pelo que se vê nos cursinhos, são poucas. Ora, cursar o Ensino Médio em escola pública não é prova de carência, assim como fazê-lo em escola particular não é prova de abundância. Como diz enfaticamente revoltada a minha empregada: Tem gente que nem come direito para pagar escola pros filhos, porque a escola pública não presta, não presta, não presta. E como efeito colateral, temos os vestibulinhos disputados como nunca. Quem fica com as vagas?

Algumas pessoas costumam argumentar, tranquilizando-se, que isso não vai dar certo porque esses alunos não vão acompanhar o curso. E as autoridades esgrimem estatísticas dizendo que acompanham sim. É claro que acompanham! Eles têm anos de cursinho nas costas, sabem muita química, biologia, física, matemática, que são as matérias específicas (sempre lembrando que elegemos Medicina para analisar). Costuma faltar geografia, história, atualidades, redação, nada que 9% ou 10% de bônus não resolvam. Sem bônus, eles teriam de superar essas barreiras, que sobram apenas para os não beneficiados. Além disso, cabe perguntar a essas autoridades: se eles estão preparados, por que precisam de bônus?

A USP tem-se vangloriado de adotar um sistema de inclusão que, pelo menos, não é um critério racial como acontece nas Federais. Não sei as outras, mas a UNIFESP tem a seu favor uma certa transparência. Criou 10% de vagas para cotistas e publica os seus nomes e classificação. Isso me permitiu saber que no ano passado o último convocado por cotas, o 17º, obteve nota 74,2. Conheço um rapaz que alcançou 74,406 e ficou em 1722º, o que me permite inferir que o último cotista de 2008 na UNIFESP foi classificado perto de 1800º no sistema universal. Claro que esta última parte eles também não publicam. Já a FUVEST dilui os beneficiados entre os outros, de modo que ninguém imagina que na Medicina Pinheiros cheguem a 37%. (E a classificação do último, qual seria, considerando que muitos candidatos já foram para a 2ª fase guindados por bônus?) As escolas particulares não reagem, embora vejam o seu número de aprovados diminuir, porque, como vimos, a FUVEST não permite que esses resultados fiquem claros para o grande público. Tenho certeza de que, mantido esse processo, os pseudo-oriundos de escolas públicas, na Medicina Pinheiros, serão quase a totalidade. Isso não é inclusão, mas exclusão. Os alunos de classe média que cometeram o pecado de pagar escola – além de financiar com impostos as públicas – ver-se-ão obrigados a fazer muitos anos de cursinho ou desistir da carreira. Afinal, pagar um colégio é muito diferente de pagar uma faculdade de medicina. E de passagem aproveito para questionar: o que faz a Santa Casa, com uma mensalidade de R$ 2.972,00 nesse pacote? Quem queria Santa Casa, necessariamente menos concorrida (vide preço), enfrentou o mesmo sistema desleal e pode até ter sido cortado na 1ª fase. Ninguém pensou nisso?

Conversei, nesta semana, com o dono de um Cursinho de São Paulo e ele me disse que está indignado vendo os seus alunos submetidos a dois pesos e duas medidas. Enquanto eram 3%, embora isso não fosse realmente pouco – era possível relevar, mas agora ficou escandaloso. Penso que os cursinhos estão numa situação confortável, pois recebem tanto os alunos das escolas particulares como os das públicas. Agora, o leitor imagine o clima entre os alunos. O conflito já está instalado, e os jovens, que têm um senso de justiça e de lealdade muito apurado, estão sofrendo com isso. Muitos dos beneficiados se dizem humilhados. E, daqui para a frente, quem entrar na USP será questionado: com bônus, ou sem bônus?

É inacreditável que a Universidade de São Paulo, considerada entre as 100 melhores do mundo, cujo vestibular é o mais concorrido do Brasil, se submeta a essa manipulação, por conta de uma política de classes, tão discriminatória quanto a racial. Espero que os responsáveis revejam os critérios e minimizem o bônus. Talvez atribuir o benefício apenas na 2ª fase fosse menos excludente. Exigir escola pública desde o Fundamental evitaria a manipulação do Ensino Médio. Mas, mantidos bônus de até 12%, é fundamental definir uma cota máxima de alunos beneficiados, por exemplo, até 10% das vagas, para evitar essa escandalosa inversão de classificações: entram os últimos e excluem-se muitos bons alunos que ali chegaram por mérito próprio.

Torço para que os responsáveis encontrem uma saída justa para a crise que se está instalando e vai ganhar corpo ao longo deste ano. Outra atitude, depois de tudo o que aqui foi exposto, é coisa de avestruz.

Sueli Caramello Uliano – 23/02/09

ADENDO: Respondeu-me o Excelentíssimo Prof.. Dr. Milton de Arruda Martins, dizendo: se algumas pessoas que não entrariam na universidade passam a entrar e as vagas não aumentaram, outras deixam de entrar, é uma questão de aritmética básica! Primeiro, eu gostaria de dizer que o desempenho desses jovens não pode ser tratado apenas como uma questão aritmética. Mas o que mais me incomoda na resposta do doutor é que ele considere que esses beneficiados são pessoas que “não entrariam e que passaram a entrar”. Eles entrariam, sim. Talvez com mais um ou dois anos de cursinho, como costuma acontecer com todos, pelos motivos que apontei acima e porque na USP sempre entram os mais preparados (ou entravam). Os que de fato não entrariam continuarão não entrando, embora as autoridades se consolem com o artifício que criaram e que produz falsos dados de inclusão social, para a mídia divulgar.

Sueli Caramello Uliano, mãe de familia, pedagoga, Mestra em Letras pela Universidade de São Paulo, Presidente do Conselho da ONG Família Viva, Colunista do Portal da Família e consultora para assuntos de adolescência e educação.

É autora do livro Por um Novo Feminismo pela QUADRANTE, Sociedade de Publicações Culturais.

e-mail: [email protected]

Publicado no Portal da Família em 01/03/2009

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