PARLAMENTARISMO E IMPORTAÇÃO DE IDEIAS

Como pode vingar um sistema representativo sem partidos dignos desse nome?

Denis Lerrer Rosenfield 

Volta e meia, imerso em crises, o País vê-se confrontado com propostas de reforma política voltadas para a implementação do parlamentarismo. É como se, por um passe de mágica, todos os problemas fossem suscetíveis de equacionamento simples, com base na mera troca de sistema de governo.

O problema é que as instituições parlamentaristas funcionam muito bem no âmbito dos princípios ou em seus países de origem. Mas não necessariamente quando transplantadas para países com tradições e História distintas.

A questão, muito bem analisada na obra de Oliveira Vianna, consiste na refração das ideias e no deslocamento das instituições. Teria sentido simplesmente importar um sistema de governo? Seria ele “importável”? As ideias ganham, nesse processo, outro significado, a despeito de guardarem a aparência de sua significação anterior. Os “importadores” podem até ter a melhor das intenções, mas seus efeitos podem não corresponder ao que foi projetado.

Operando em outro contexto institucional e conforme outra História, produzem-se consequências que não se verificariam em seus países de origem. A depender do modo de utilização das ideias, elas podem vir a produzir grandes deslocamentos políticos. Como pode uma ideia constitucional vingar em países de tradição totalmente diferente? De que valem comparações se elas não levarem em conta o contexto histórico de implementação dessas ideias?

Há uma certa tendência na política brasileira de opção por grandes transformações, em vez de mudanças graduais que observem os vários contextos particulares de sua concretização. O parlamentarismo pressupõe partidos políticos organizados, com doutrina própria, que disputem a opinião pública segundo as suas concepções; procurem conhecê-la e persuadi-la do bem fundado em seus projetos. Não devem ser meros agregados de pessoas e interesses, mas ter um propósito válido para toda a coletividade.

Ora, observamos na cena política brasileira um forte componente fisiológico, e mesmo de corrupção, que faz a representação política ser falseada, ou seja, submetida a trocas dos mais diferentes tipos para que propostas coletivas sejam aprovadas. A aprovação de reformas passa por negociações que nada têm de republicanas, embora sejam de interesse nacional.

Imagine-se, num sistema parlamentarista, o não atendimento desse tipo de demanda. Ele não repercutiria somente na não aprovação de um projeto, mas produziria um voto de desconfiança, podendo levar à queda do Gabinete de governo. Dado o caráter inorgânico dos partidos políticos brasileiros, poderíamos ter vários primeiros-ministros no transcurso do ano.

De nada adiantam grandes ideias se não vierem acompanhadas de medidas básicas que seriam de muita valia para um melhor regime republicano. Pense-se, por exemplo, que um novo governante deveria, por sua vez, substituir os milhares de cargos comissionados, criando total balbúrdia na administração pública. Aliás, necessita o País de tal número de cargos?

É evidente que a inexistência de cláusula de barreira para a criação de partidos políticos é um poderoso estímulo à fragmentação partidária, tornando difícil qualquer organização. A observação histórica mostra que, tanto em sistemas de governo presidencialistas como parlamentaristas, poucos partidos fortes são de natureza a produzir estabilidade governamental.

Tampouco são favorecidas as instituições se essa pletora de partidos for organizada sob a forma de eleições proporcionais e, dependendo da aliança, o voto num partido redundar na escolha de outro. A proibição de coligações partidárias seria um poderoso instrumento de depuração do sistema político, produzindo um mínimo de organicidade. Haveria coincidência entre a representação política e a partidária.

Agora, na contramão de qualquer depuração, estamos vendo nascer propostas de financiamento público de eleições estimadas em mais de R$ 5 bilhões. Num país em séria crise econômica não deixa de ser um escárnio. Tome-se o caso da França. As perdas dos socialistas e republicanos, por suas derrotas legislativas, são estimadas em torno de poucas dezenas de milhões de reais, já feita a conversão. O partido de Emmanuel Macron ganhou em torno de 80 milhões. Os patamares, comparativamente, são para nós muito baixos. No Brasil fala-se de bilhões de reais como se fosse apenas o necessário, da mesma forma que a nossa corrupção é de país rico, sempre calculada em bilhões.

Partidos deveriam ser financiados, enquanto entidades privadas, por seus membros e simpatizantes. Deveriam fazer um esforço de coleta de doações, permitidas a pessoas físicas pela nova legislação.

Considerando que não há nenhuma organicidade partidária, parte-se agora, dada a proibição da contribuição empresarial, para o financiamento público, que é originário de impostos. Tirar-se-ia do orçamento da saúde, da educação ou da habitação, por exemplo, para financiar os partidos.

Hoje se sabe, graças à Lava Jato, que os recursos de empresas só aparentemente eram privados; na verdade, eram resultado da corrupção, do desvio de recursos públicos. Graças a esse esquema político perverso, os espetáculos políticos midiáticos puderam ser realizados. A opinião pública, despreparada, comprou a mensagem que lhe foi oferecida. A política tornou-se assunto de marqueteiros, mercadores de imagens pagos a peso de ouro.

Oliveira Vianna, em seu célebre livro o Ocaso do Império, assinala que no Segundo Reinado os partidos se haviam tornado “simples agregados de clãs organizados para a exploração em comum das vantagens do Poder”. Ou, ainda: “Os programas que ostentavam eram, na verdade, simples rótulos, sem outra significação que a de rótulos”. Parece que está falando dos dias de hoje.

Como pode vingar um sistema representativo sem partidos dignos desse nome?

Fonte: Jornal “O Estado de São Paulo”

 

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