(…) O jato já entrou para nossa rotina visual. Já o vimos às centenas, aos milhares. Mas o importante no jato não é o jato e sim seu elenco singularíssimo. Quando ele pousa, ainda saturado de infinito, estejam certos de que tudo é possível. Coloca-se a escadinha e abre-se a pequena porta. E, então, os passageiros começam a sair.
Descem rajás, mágicos domadores, mímicos, profetas bailarinas, e até brasileiros. Quanto aos brasileiros, já os conhecemos e passemos aos demais. Falei nas velhas internacionais que qualquer jato traz e qualquer jato leva? E, se duvidarem, até vampiros desembarcam dos prodigiosos aviões. Ou comedores de orelhas ou o índio que devora giletes.
Mas não falei de uma figura que é de uma singularidade ainda mais impressionante do que as citadas. Refiro-me à sra. Betty Friedan, líder feminista norte americana. Digo “líder feminista” e começam as minhas dúvidas. Sempre escrevo que ninguém enxerga o óbvio, ou por outra: – só os profetas o enxergam. Pois é óbvio que a sra. Friedan não tem nada a ver com a mulher. E pelo contrário: – é uma inimiga pessoal das mulheres.
Não sei se sabem, mas a mulher tem vários inimigos pessoais. Um deles, e dos mais cruéis, são os grandes costureiros. É claro que os pequenos também. Mas dou um destaque especial aos costureiros célebres, que inventam modas, que milhões de mulheres seguem, em todos os idiomas, com uma docilidade alvar. A única coisa que os move, e os inspira, é a intenção evidente e obsessiva de extinguir toda e qualquer feminilidade.
Imagino o escândalo do leitor: – “Mas por quê, ora pinóia?” (“pinóia” é a gíria refinada que acabo de exumar). Aí está um mistério nada misterioso. O autor dos vestidos vê a mulher como a rival que o há de perseguir, do Paraíso ao Juizo Final. E, por isso, o empenho com que trata de transformar a mulher em uma figura cômica.
Como são desinteressantes as mulheres que se vestem bem. E o pior é que os costureiros, com diabólico engenho, atingem em cheio os seus objetivos. Realmente, nunca a mulher foi menos amada. Outro dia, remexendo nos meus velhos papéis, descobri uma crônica de dois anos atrás, em que eu próprio escrevia: – “Nunca a mulher foi tão pouco mulher, nunca o homem foi tão pouco homem”. O raciocínio é simples: – se a mulher é menos mulher, o homem será menos homem.
(…)
O que a sra. Friedan quer é, justamente, liquidar a mulher como tal. (…) Nossa ilustre visita pensa assim, mais ou menos assim: – “A mulher é um macho mal acabado, que precisa voltar à sua condição de macho”. Dirão vocês que estou abusando do direito de interpretar e fazendo um exagero caricatural.. Pelo contrário: – estou sendo fidelíssimo ao sentido dos seus textos, de todas as entrevistas que concedeu (…).
Para a líder do antifeminismo, a mulher não tem nenhuma dessemelhança com o homem. Nenhuma? Nenhuma. Nem anatômica? Se ela não faz a ressalva, vamos concluir: – nem anatômica. E essa coisa misteriosa e irresistível que nós chamamos “feminilidade”? A entrevistada(…) (1) responde: “A feminilidade não existe”. (…)
“…. Quem está por trás da líder antifeminista? Quem prestigia e aplaude a sua cruzada contra a mulher,contra o casamento e contra a família? Uma série de progressistas da Igreja. Esses elementos a tratam a pires de leite como a uma úlcera.
Mas vejam vocês, como vivemos numa época em que tudo se faz e tudo se diz. Há pouco tempo, ninguém teria a coragem de, alçando a fronte, declarar: -“A feminilidade não existe”. Diz mais: – que a mulher para viver dignamente precisa estar acima de “definições sexuais” como “mãe e esposa”. Para a pobre senhora (Friedan) a maternidade é um fato apenas físico, como se a mulher fosse uma gata vadia de telhado. Nem desconfia que sexo para o ser humano, é amor. Há dez anos, ela não diria isso. E se o dissesse a família trataria de, piedosamente, amarrá-la num pé de mesa, e ela teria que beber água de gatinhas, numa cuia de queijo Palmira. (…)
Notas:
- O autor havia se referido a uma entrevista de Friedan ao jornal “O Globo”.
- A crônica de Nelson foi publicada em 17 de abril de1971. Fazem 48 anos! Ideologia de gênero não era moda. O feminismo que o gerou estava em seu início. Nelson soube ver. Viu o óbvio. O óbvio ululante. E tem gente que não vê até hoje…
Fonte: Rodrigues,Nelson. 1912-1980. O reacionário: memórias e confissões – São Paulo: Companhia das Letras. 1995. p. 192-195.