O grande escritor Daniel-Rops, no texto que segue, explica algumas características da Europa no início da Baixa Idade Média, sécs. XI-XIII, apogeu da era feudal. Primeiro, unidade: uma única família com os mesmos valores de civilização. Depois, enorme liberdade individual e de comércio. Finalmente, internacionalismo na direção da Igreja, na educação e na arte.
“Exteriormente, a Europa dos séculos XII e XIII, não parece, (…) muito diferente da nossa, e se os conflitos não atingiam as proporções cósmicas dos nossos, se tivermos em conta as dimensões do mundo de então, eram igualmente graves. Existe, contudo, uma diferença fundamental entre a vida internacional dessa época e a de hoje. Os antagonismos entre reis e príncipes não correspondiam ao dramático embate que faz dois povos arriscarem o seu destino. Se havia um relativo patriotismo, como se vê pelo ardor dos franceses em Bouvines, o nacionalismo ainda não conferia aos conflitos o seu caráter irredutível. Politicamente cindida, e às vezes dilacerada por duras guerras, vivia uma Europa.
Esta evidência domina todo o quadro político da época: para além dos conflitos, manifesta-se de muitos modos uma unidade. A Europa conheceu durante estes trezentos anos uma era de profunda harmonia, tal como não experimentara desde o fim da pax romana nem viria a experimentar até os nossos dias. O jogo brutal da política não impedia que os europeus sentissem – inconsciente mas fortemente, e sem terem de apelar para termos como “Europa unida” ou “Comunidade Européia” – que eram membros de uma única família e defendiam os mesmos valores de civilização.
São inúmeras as provas deste estado de espírito. Mesmo em plena guerra, os governantes dos países beligerantes nunca se lembraram de prender e de mandar para um campo de concentração quem abastecesse o inimigo. Cruzar uma fronteira não era de modo algum uma operação que envolvesse esse inútil desperdício de passaportes, vistos de entrada e outros papéis vexatórios que são privilégio do século XX. Os peregrinos podiam ir livremente a todos os países para rezar ao santo da sua devoção, e não só não deparavam com nenhum obstáculo administrativo como recebiam proteção dos poderes públicos das regiões que atravessavam. A passagem de massas enormes como as das Cruzadas provocou muitos incidentes, mas unicamente porque determinados bandos de cruzados-saqueadores cometiam excessos lamentáveis. Nenhum governo teve a menor hesitação em reconhecer o direito à liberdade de locomoção. Nenhuma guerra impediu tampouco que os comerciantes enviassem as suas mercadorias às feiras internacionais, ou que os banqueiros da França e da Lombardia trocassem cartas de crédito. Só quando o rumo imprevisível das guerras não o permitia é que os conflitos prejudicavam os negócios, porque os governos não proibiam “o comércio com o inimigo”.
Inúmeras vezes, os povos europeus davam-se as mãos para realizarem juntos uma ação comum. O exemplo mais surpreendente disso são as Cruzadas, mas viu-se também os franceses e os ingleses ajudarem os espanhóis e os portugueses no seu esforço por reconquistar a Península Ibérica, os alemães unirem-se aos húngaros para penetrarem na selvagem Transilvânia, e os poloneses enviarem tropas em auxílio dos germanos. Mais ainda: muitas vezes pôde-se ver que, ao invés de chegarem às vias de fato, os príncipes ou as cidades pediam a arbitragem de uma alta personalidade moral, um santo, um papa, para resolverem os seus litígios.
Esta unidade da Europa era manifesta em todos os terrenos. Na Sé de São Pedro sucediam-se italianos, franceses e ingleses. As grandes Ordens monásticas deslocavam os seus homens de país para país sem se preocuparem com as fronteiras. Um estatuto cisterciense chegava a estabelecer que não se devia ter em conta nenhum critério nacional na eleição dos superiores. Frequentemente, os bispos e os abades eram totalmente estranhos ao mosteiro ou à diocese que deviam governar. Assim, Santo Anselmo, que nasceu em Aosta, foi abade de Bec, na Normandia, e depois arcebispo de Canterbury; São Hugo, um saboiano, foi bispo de Lincoln, e João de Salisbury, que era inglês, exerceu o seu múnus episcopal em Chartres.
O mesmo internacionalismo existia também no domínio do pensamento e da cultura. Ninguém concebia que a um homem de grande competência fosse negado o direito de ensinar em determinado país simplesmente por ser estrangeiro. Paris tinha muitos estrangeiros professores: Sigério de Brabante era belga, Santo Alberto Magno renano, São Tomás de Aquino e São Boaventura italianos. E o que era verdade no caso dos mestres também o era no dos estudantes: em Paris, havia ingleses, alemães, escandinavos, portugueses e até bizantinos e levantinos. O uso exclusivo do latim como língua internacional permitia que esses auditórios heterogêneos compreendessem as lições dos mestres. O resultado foi que havia uma teologia, uma filosofia e uma literatura da Europa de que todos os países participavam, um tesouro a que todos tinham acesso. Toda a atividade do espírito estava orientada para um mesmo fim: tinha um sentido e uma ordem.
Acontecia o mesmo no campo das artes. Os mestres-de-obra eram apreciados bem longe dos seus países de origem – houve franceses que trabalharam na Hungria, na Espanha, na Inglaterra –, e as oficinas de canteiros deslocavam-se por todo o mundo católico, de modo que as obras eram influenciadas incessantemente por milhares de correntes sutis. O homem moderno, que julga candidamente que os intercâmbios intelectuais datam dos meios mecânicos de comunicação, dificilmente compreende esta animação fecunda e prodigiosa”.
Nota do site
O texto está dividido em 2 partes. A próxima será sobre a Cristandade.
Fonte: ROPS-Daniel. A igreja das catedrais e das cruzadas. Trad. de Emérico da Gama, São Paulo: Quadrante, 1993, p. 36,38.