O amor morava em uma casa / Chegou a essa casa a adversidade, e o amor continuou morando ali / Chegou a essa casa a enfermidade, e o amor continuou morando ali / Chegou mais tarde a essa casa a pobreza, e o amor continuou morando ali / Chegaram à casa as dificuldades, e o amor continuou morando ali / Inclusive chegou à casa a morte, e o amor continuou morando ali / Mas um dia, chegou à casa o egoísmo e já não pôde mais morar ali o amor. Mora ali, agora, a solidão.
(Poeta mexicano anônimo, séc. XX)
Ao me deparar com o poema que serve de epígrafe a este artigo, não tive como evitar relacioná-lo com o filme Roma, também mexicano, indicado ao Oscar em 10 categorias e vencedor de três estatuetas em 2019. Escrito e dirigido por Alfonso Cuarón, Roma é um canto à vida, ao amor e à perda colocado na tela com o equilíbrio e a beleza decantadas a partir dos mais altos valores humanos e cristãos. O filme tem a linguagem universal das obras primas, capaz de quebrar barreiras geográficas, de classe e de cultura. Quem assistiu Roma e captou a sua mensagem realista e cheia de delicadeza, sabe do que estou falando.
Na sociedade ocidental compartilhamos uma visão de mundo que consiste em enfocar a vida como uma tarefa inspiradora, traduzida na cultura do cuidado do outro, da aceitação do sofrimento por amor, do serviço à sociedade e ao próximo, da alegria mais íntima baseada no perdão e na misericórdia, da rejeição das manifestações do egoísmo. Por mais que demos voltas, o niilismo, o relativismo e os efeitos negativos da vida hiperconectada não são capazes de afogar os melhores valores da nossa cultura, fato confirmado pela corrente de solidariedade e sacrifício generoso despertada pela atual pandemia.
Essa visão cristã do mundo – positiva, alegre e generosa – constitui uma identidade, moldou a cultura ocidental ao longo dos séculos e também nos legou um patrimônio cultural maravilhoso. Os exemplos são quase infinitos, atingem todos as áreas da atuação humana, e apenas a título de exemplo posso citar a Pietá e a Capela Sistina de Michelangelo, as catedrais de Sevilha e de Colônia, o Templo da Sagrada Família de Gaudí, a Ode à Alegria da nona sinfonia de Beethoven, a Escola de Atenas de Rafael, a Divina Comédia de Dante, alguns dos filmes de Terence Mallick (A Árvore da Vida, Uma Vida Oculta), as Confissões de Santo Agostinho, a teoria do Big Bang de Georges Lemaître, etc. Se você já teve a experiência de “se apropriar”, nem que seja de uma mínima parte, desse patrimônio cultural que acabo de mencionar, certamente se identifica com a convicção de Dostoievski: “O mundo será salvo pela beleza”. A razão é que a beleza e a verdade sempre vão juntas.
Na vida intelectual, a apropriação de algo não se dá por geração espontânea. É preciso colocar-se sob a influência daquilo que temos a intenção de nos apropriar, abertos a essa influência e com tempo disponível. Nesse artigo defendo que o itinerário para uma imersão de qualidade no universo cultural começa no colégio e, para isso, a grade curricular ou o plano de estudos da escola deve ser rico. Estou plenamente de acordo com Sir Ken Robinson, escritor e educador inglês, quando afirma que a formação cultural é um dos quatro fins da educação (os outros seriam o econômico, o social e o pessoal). Robinson afirma que “a educação deve capacitar o jovem para compreender e valorizar a própria cultura e respeitar todas as demais”. Toda comunidade humana desenvolve convenções e valores comuns, ou seja, cria cultura. Vivemos em um mundo cada vez mais povoado e conectado, o que leva a uma grande complexidade cultural, com muitas subculturas que se entrecruzam, principalmente no universo da Internet. Basta pensar nos fenômenos dos youtubers, das redes sociais e de um DJ como D-Nice, capaz de reunir 200 mil pessoas em um evento on-line. Para saber navegar nesses mares, distinguir o que é valioso daquilo que não o é tanto, o adolescente necessita de guias experimentados e que queiram o seu bem. No colégio encontrará essa ajuda nos seus professores.
Lembro-me como se fosse hoje daquela segunda-feira de algum mês de 2016, em que o professor de Artes da minha escola me contou o seguinte fato: no final da aula, um aluno do 5º ano lhe comentou em particular que havia ido no final de semana com os pais a uma exposição de arte moderna e arrematou com “Professor, não entendi nada, e meus pais também não!”. Como foi libertador para aquele aluno ouvir do seu professor que ficasse tranquilo, que o problema não estava nele ou nos pais, mas sim nas “obras de arte” da exposição, seguidoras das tendências ao feio e ao niilismo que predominam na arte de hoje!
Uma boa base cultural, bem cultivada, nos ajuda a viver melhor e a ser mais felizes. Primeiro, porque nos dá o amor à verdade e a capacidade de reconhecê-la pelo domínio dos bons hábitos do pensamento lógico, da linguagem e da metafísica. O segundo motivo é a elevação do espírito que experimentamos ao subir aos ombros dos gigantes da literatura, das artes, da música, da história, da ciência, que ajudam os jovens a ampliarem sua visão de mundo: contemplar a grandeza dos que deixaram marcas que não se apagam com os séculos auxilia o descobrimento humilde da própria missão nesse mundo. Finalmente, em terceiro lugar, as boas ideias e as belas artes nos transformam, fazem com que queiramos ser melhores moralmente, cultivando essas forças motrizes interiores que chamamos de virtude.
Seria dramático chegar ao “estado voluntário de ignorância” daqueles estudantes do curso de Direito de uma importante universidade brasileira, conforme me contou um amigo professor protagonista do fato ocorrido há mais de dez anos: vendo o pouco interesse que mostravam pela sua matéria – Filosofia do Direito – e a quase incapacidade de captar os conceitos explicados, interrompeu a aula e lhes perguntou, tentando estabelecer uma base mínima de diálogo, se sabiam se “a Revolução Francesa tinha acontecido antes ou depois do descobrimento do Brasil”. Os alunos não só não sabiam a resposta como se divertiram com a sua ignorância. Triste, não? O professor fez os estudantes perceberem a sua lamentável situação. O problema não estava na Filosofia do Direito, mas na ignorância largamente cultivada por aqueles jovens.
Todos nós fomos adolescentes e quisemos um dia mudar o mundo e encontrar o sentido das nossas vidas. Penso que os anos de colégio têm o papel muito importante de não deixar morrer esses sonhos e essa busca. Depois, com os anos da maturidade, aquela formação cultural recebida se plasmará em modelos de dedicação e heroísmo que ajudarão a mulher ou o homem adulto a se transformar, não sem esforço, em uma pessoa que compreende os problemas do mundo à sua volta e tem alguma ideia de como soluciona-los, que cumpre em consciência os seus deveres no trabalho e na sociedade, que se esforça por ser boa mãe ou bom pai de família e que tenta influir na sociedade e na cultura na medida das suas possibilidades. A semente plantada nos tempos do Ensino Fundamental e Médio sempre dará fruto. A escola centrada apenas nos aspectos técnicos, na preparação de exames – daí a perversa classificação de matérias “mais importantes” e “menos importantes” –, em formar “bons cidadãos”, acaba por matar a criatividade e os sonhos das crianças, segundo expõe amplamente Ken Robinson nos seus livros e TEDs. Defendamos as escolas que apostam em um currículo humanamente profundo, que trate de forma harmônica e complementar a leitura, a escrita, as artes, a música, o teatro, a história, a filosofia, a religião, a matemática e as ciências naturais: os estudantes em formação necessitam ser apresentados à unidade do real vendo a harmonia entre as matérias que estudam, e assim matarem com entusiasmo sua sede de saber, sua curiosidade natural.
Podemos ver nos versos da epígrafe a este artigo e na cena final do filme Roma, quando toda família se une para curar pelo amor a profunda ferida na alma de Cleo, uma conexão que aponta para o amor como o permanente que deve estar no final da vida, quando se faz o balanço de uma existência: essa é uma verdade que se aprende, e, felizmente, temos ótimos mestres ao longo da história, bastando escutá-los. A pessoa verdadeiramente culta não se distrai do principal da vida, descobre os verdadeiros valores a serem cultivados, principalmente o amor. Um texto escrito em uma lápide na Cripta da Abadia de Westminster pode nos servir para finalizar as reflexões desse artigo:
“Quando era jovem e minha imaginação não tinha limites, sonhava com mudar o mundo. À medida que fui amadurecendo e adquirindo sabedoria, descobri que o mundo não mudaria. Então me propus um objetivo mais modesto e tentei mudar meu país. Mas meu país tampouco queria mudar. Quando se aproximava o final de minha vida me conformei com tentar mudar minha família. Mas as pessoas mais próximas de mim também não me prestaram atenção. Agora, em meu leito de morte, de repente, compreendi uma coisa: se tivesse começado por mudar a mim mesmo, talvez minha família tivesse seguido meu exemplo; com sua inspiração e alento, talvez juntos tivéssemos podido mudar o país; então, quem sabe, talvez poderíamos ter mudado o mundo!”