Valter de Oliveira
18/07/2009
Tinha pensado em dar alguns exemplos da grave crise ética que assola o mundo contemporâneo. Pensei na última encíclica do Papa. Como comentar alguns de seus conceitos de modo a não dar a impressão que são coisas muito abstratas, sem ligação com o nosso dia-a-dia? Imaginei alguns exemplos. Foi então que, antes de iniciar meu artigo, resolvi dar uma olhada no “O Estado de São Paulo” de hoje (18/07/2009). E ali, logo na página 2, encontrei o artigo de Mauro Chaves. Artigo no qual o valoroso jornalista, de modo claro e inteligente, mostra todo o mal que a ausência de valores morais provoca em nosso país. Exatamente na linha do que pretendíamos fazer. Só que sem o talento do autor…
Mauro Chaves simplesmente nos mostra a grave falha moral da irresponsabilidade humana. É confrangedor ver pessoas que não reconhecem os próprios erros. Pior ainda vê-los transferir a própria culpa para os outros. É um pecado contra a verdade. Não é pouca coisa.
O artigo põe o dedo em muitas chagas: empresas particulares, órgãos governamentais, poderes da República, o próprio Estado. E com toda a razão.
Notemos que todos os criticados, quando se pronunciam, apresentam-se como grandes defensores da cidadania e do desenvolvimento. Palavras, somente palavras.
Sucede que o desenvolvimento que defendem nada tem a ver com o que nos ensina a Doutrina Social da Igreja. Este só é verdadeiro quando é alicerçado no bem comum, na justiça, na responsabilidade, na caridade, na verdade. O falso, o dos relativistas, não passa do interesse nefasto das oligarquias contemporâneas. Nacionais e Internacionais.
Parabéns Mauro Chaves! Seu artigo denuncia esses males com maestria. E por isso, com grande satisfação, o reproduzimos em nosso site.
TERCEIRIZAÇÃO DAS CULPAS
Mauro Chaves
Nos últimos tempos tem-se observado no Brasil uma verdadeira revolução ética: é a terceirização das culpas, fruto da criatividade comportamental brasileira. Já houve tempo em que as pessoas tinham muita vergonha quando se desconfiava delas e até podiam cometer gestos tresloucados (como o suicídio de um presidente da República) quando se lhes atribuía culpa pelo “mar de lama” à sua volta. Hoje em dia, não só ninguém assume (de graça) responsabilidade alguma pelos atos dos outros – mesmo que estes sejam seus notórios apadrinhados, agregados ou apaniguados -, como, ao contrário, jogam-se todas as culpas próprias nos ombros do próximo, especialmente se subordinado. É que se erradicou do território nacional a velha praga do “sentimento de culpa” (antes só interrompida nos dias de carnaval) que os velhos psicanalistas consideravam fonte de depressão e infelicidade.
Para muitos esse incômodo sentimento não passava de um obsoleto subproduto do maniqueísmo religioso – mas aí a questão é controversa, embora, de fato, o antigo medo do inferno tenha praticamente desaparecido. O que mais importa reter, no entanto, é a formidável descoberta da possibilidade de se terceirizarem as culpas, jogando para os outros todas as consequências negativas dos próprios atos. Rompeu-se aqui o clássico princípio ético-jurídico da individuação das responsabilidades, criando-se um sistema de liberação psíquica capaz de gerar conforto psicológico. É verdade que essa terceirização também resulta em quebra de valores morais, que tem por consequência a impunidade. Mas tudo na vida tem seu custo.
A terceirização das culpas se manifesta de várias formas na sociedade brasileira. Por exemplo, no campo da prestação dos serviços públicos, como os de eletricidade e telefonia, nas transações, como as bancárias, em tudo o que envolva a utilização de sinais de comunicação eletrônica ou diga respeito a procedimentos informatizados, ninguém mais tem culpa quando “cai o sistema”. A culpa, pois, é sempre do “sistema”, que ninguém sabe ao certo onde está, de onde vem e muito menos por que “caiu”. O sinal de “banda larga”, quando interrompido por dezenas de horas, causando incalculáveis prejuízos às pessoas que dele dependem (hoje crucialmente), propicia, no máximo, um afrontoso ressarcimento indenizatório de dois ou três reais (quando não de apenas alguns centavos).
Quando uma rede de lojas vende um produto eletrônico que deixa de funcionar no outro dia, ao infeliz freguês que o comprou – e tinha urgência em utilizá-lo – só resta tentar entender-se (geralmente em vão) com uma firma de “assistência técnica” de que jamais ouviu falar, de nada adiantando reclamar aos Procons da vida – embustes instituídos mais para desarmar do que para proteger os consumidores. É que a loja vendedora terceiriza a culpa pelos produtos estragados que vende, assim como inúmeros setores do comércio, da indústria e de serviços deixam de assumir a responsabilidade pelo que venderam, fabricaram ou prestaram, repassando-a a terceiros que não venderam, não fabricaram nem prestaram coisa alguma ao coitado do comprador.
É no espaço público-político, no entanto, que a terceirização das culpas se institucionalizou mais plenamente, em especial nos últimos tempos. Quando um chefe de Estado e governo afirma, com ênfase e convicção – dando até a incrível impressão de estar acreditando no que diz -, que não tinha conhecimento algum dos cambalachos, maracutaias e falcatruas, articulados e executados na antessala de seu próprio gabinete, há aí uma terceirização de culpa elevada a nível institucional. É bem verdade que na terceirização das culpas, especialmente em alto nível governamental, costuma ser escolhido a dedo, como absorvedor (de todas essas culpas), alguém de grande qualificação.
Na questão do mensalão, por exemplo, foi escolhido o ex-ministro mais forte, (1) que se tornou o único cassado – além do denunciador -, como se só ele tivesse realizado todas as operações ilícitas visando à conquista da base parlamentar. Para pagar essa terceirização de culpa se ofereceu a ele a condição de intermediar grandes negócios com o governo, por meio da participação, em grande estilo, no jet set internacional. Quer dizer, uma cassação que se tornou altamente rentável. É até possível prever que terceirizações de culpa tão prósperas como essa estimulem a criação de uma nova profissão, a de culpado profissional particular – personal guilty -, contratado por gabinetes políticos com alta remuneração e o baixo risco correspondente ao grau de punibilidade vigente no País.
Quando o presidente de um dos Poderes da República (2) afirma ignorar a existência de atos secretos assinados por um apadrinhado seu, durante longos anos, assim como o valor de depósitos de dinheiro irregular efetuados em sua própria conta corrente, e também os desvios de dinheiro público realizados por fundação com seu próprio nome, da qual é presidente vitalício e responsável financeiro estatutário, e que também ignora as nomeações (secretas), para a instituição que preside, de seus próprios parentes, assim como desconhece o tráfico de influência praticado nessa instituição por seus próprios descendentes, nesse caso as culpas foram terceirizadas para todo um Poder de Estado, tornando-o institucionalmente degradado – a ponto de ser ridicularizado (pizzaiolos) pelo próprio chefe de Estado que o degradou.
Em razão do lamaçal em que estão transformando nossos Poderes de Estado, talvez precisemos ressuscitar em nossa sociedade, com urgência, o obsoleto “sentimento de culpa”.
Mauro Chaves é jornalista, advogado, escritor, administrador de empresas e pintor. E-mail:[email protected]
1. O articulista se refere ao ex-ministro José Dirceu.
2. José Sarney, presidente do Senado.
Fonte: O ESP Sábado, 18 de Julho de 2009 – coluna opinião, p. 2.