Não há dúvidas de que o ano ainda será muito difícil em termos quantitativos de vacinas. Em conversa na semana passada – dois dias antes do Butantan anunciar a produção de vacina 100% brasileira – Dimas Covas, diretor do instituto, se mostrou bastante apreensivo. Ponderou, na quarta-feira, à coluna, que os sucessivos anúncios do Ministério da Saúde em relação a compras de imunizantes “até podem estar contratualmente assinados”, mas “vacinas estão em falta não só no Brasil, bem como em outros países”.
Segundo Covas, as grandes companhias contratadas pelo País, como a AstraZeneca, estão tendo dificuldades de entregar no prazo até as prometidas para países da Europa, os primeiros contratantes. “No mundo ideal, o ministério fala em 300, 400, eu já ouvi 500 milhões de doses para o ano de 2021. Entretanto existe uma diferença muito grande entre o ideal e o real.”
Isto posto, o também médico faz contas. “Olha, o mundo tem mais de 7 bilhões de pessoas e os quantitativos de vacina projetados chegam a 4 bilhões, talvez 5 bilhões.” Além disso, existe outro problema considerado tão grande quanto a procura por doses: não se sabe como elas serão distribuídas internacionalmente. E mais. Na medida que a vacinação ocorre lentamente “o vírus pode evoluir muito rapidamente”. Ou seja, a lentidão favorece o aparecimento de variantes.
Vamos conseguir importar de forma a minimizar isso? “O Brasil só pode contar e efetivamente tem contado com as vacinas que o Butantan entrega (1). Entregamos mais de 25 milhões de doses, e em abril, chegaremos a 46 milhões (declaração anterior ao anúncio de vacina própria).” Covas lembra ainda que receberam um milhão de vacinas da Covaxin, semana passada, e há promessa de mais alguns milhões nessa semana. “Mas de fato, será um ano de luta intensa contra o vírus porque a pandemia está no seu momento mais grave e a escassez de vacinas provavelmente vai se estender durante todo o ano de 2021”. Aqui vão os melhores momentos da conversa com Covas no programa Show Business, na Band – que irá ao ar no Domingo de Páscoa.
Tem gente falando que a partir de julho vai sobrar vacina. Pode acontecer?
Olha, o mundo tem mais de 7 bilhões de pessoas e os quantitativos de vacina projetados chegam a 4 bilhões, talvez 5 bilhões. E dentro desse quadro, há outro problema maior: saber como essas vacinas serão distribuídas. Existe uma corrida geopolítica por trás da necessidade de saúde pública. E ela, tenho certeza, já começou. Os países ricos estão correndo para vacinar a sua população o mais rapidamente, com objetivo de ter em mãos o chamado Passe Livre. Ou seja, querem abrir as suas economias muito rapidamente baseados na vacinação. A China hoje é o país que mais vacina no mundo, acompanhada dos Estados Unidos, depois de países da Europa. E quem abrir sua economia em primeiro lugar vai ter óbvia vantagem econômica sobre os demais países. Não podemos ser muito ingênuos, achar que é só a questão humanitária neste momento. Como sempre acontece, os países pobres ficarão no fim da fila.
Enquanto não houver a vacinação de forma global, não vamos nos ver livres dessa pandemia?
Pode ser que ela desapareça nos países centrais e seja, vamos dizer assim, colocada pra circular nos países periféricos. Esse seria o pior dos mundos. Seria uma situação catastrófica que só poderia ser vencida rapidamente se houvesse uma cooperação global. Isso, infelizmente, não houve. Em um primeiro momento de desafio, representado pelo vírus, os países agiram de forma isolada. E continuam agindo ainda assim em grande parte. Esse é o maior erro desse momento. Não podemos pensar que a pandemia poderá ser eliminada localmente.
A OMS tem defendido uma ação global?
Tem sim, mas ela não tem acontecido. Nós podemos melhorar um país com vacinação, podemos diminuir a circulação do vírus. Mas veja, se ele tiver circulando em outros locais do mundo, as fronteiras vão permanecer restritas e você não vai conseguir abrir a economia de um país enquanto o vírus circular em outros países. Quer dizer, essa pandemia só poderá ser vencida se ocorrer de fato uma cooperação global. Muitos países sequer se preocupam muito com os países vizinhos.
O Chile tem cinco vezes mais vacinas do que precisa. Poderia ajudar?
É, isso tudo não é positivo em relação à epidemia. E aí fica realmente a impressão de que há uma guerra econômica por trás disso. (2) Uma vez passada essa fase crítica, vai ser o que determinará a questão da vacinação. Eu tenho absoluta convicção de que a questão geopolítica já começou, há muito tempo, e que a corrida agora é para vacinar aqueles países que detêm a tecnologia. E uma vez terminada a vacinação desses países, aí sim poderá começar a ocorrer a disponibilidade de um maior volume de vacinas para os demais países. Obviamente que isso vai ter um preço. Não será de graça, infelizmente.
A eleição de Joe Biden, nos EUA, não sinaliza melhora e maior harmonia nas relações internacionais?
Concordo com você que a saída de um negacionista e entrada de uma pessoa que pelo menos entende a gravidade da crise indica possibilidade de mudanças em termos de coordenação global. Agora, nós, obviamente, ainda estamos na fase da questão fundamental: a do combate à epidemia. A vacina ajuda nesse momento. Ajuda muito. Mas a epidemia cresce ainda no mundo todo e já vemos países enfrentando a terceira onda e o aprofundamento de uma preocupação imensa com as chamadas variantes.
O Brasil é hoje gerador de variantes?
Sim, e essas variantes podem inclusive ser resistentes às vacinas que estão sendo usadas. O fato da epidemia estar descontrolada aqui no Brasil propicia a evolução dessas variantes que estão se tornando a cada momento mais agressivas. É o caso dessa variante chamada brasileira, a P1, que já é muito agressiva com relação ao que aconteceu o ano passado e já está se espalhando pelo mundo. Da mesma forma que existem outras variantes de preocupação, como a da África do Sul. Então é possível, se nós não andarmos muito rápido no combate à epidemia em si, que haja o surgimento de variantes que porventura possam até ser resistentes a essas vacinas. Aí, todo esse esforço nosso terá que ser novamente repetido com uma nova forma, uma nova geração de vacinas pra combater essas variantes. (3) Complicado, não?
Vacinar em si, na sua visão, é um problema?
Olha, o Butantan nesse momento tem uma planta, uma fábrica em reforma acelerada que deve terminar agora em setembro. Vamos finalizar a parte física de estrutura, de obras civis, e vamos equipar essa fábrica até o final deste ano. A perspectiva é que tenhamos produção integral da vacina ainda no segundo semestre.
Notas:
Os destaques em negrito são do site olivereduc.com
1. E as vacinas da Fiocruz? Alguma razão para esquece-las?
2. Vi um vídeo antiglobalista enfatizando o interesse em se limitar a liberdade comercial do indivíduo que implicaria também na crença que só o Estado pode nos salvar dessa catástrofe. Em outras palavras, o que dezenas de anos de doutrinação não conseguiram seria obtido agora em uma manipulação através do medo. E ainda ficaríamos gratos. Tema para ser pensado e aprofundado. Não me parece só teoria da conspiração. Anote-se também que parece que estão acordando para o papel negativo da China. Outro artigo do ESP aborda o assunto.
3. Realmente é complicado. Aqui no Brasil prevaleceu a ideia, fomentada também pelo governador de S. Paulo, que tudo vai mal devido aos erros do presidente. A entrevista desmente a narrativa. Se ele tivesse tido um desempenho ótimo ainda estaríamos em maus lençóis. Curiosamente Mandetta disse algo semelhante em entrevista na Band a Mônica Bérgamo: Tratou do problema entre as grandes potências e reclamou da insensibilidade de muitos países grandes (aqueles que são exemplares na luta pela vida?) diante da pandemia reclamando da falta de estadistas mundiais. Haja complicação!