Quando era menino morei na Vila Bela, em São Paulo, um bairro com muitos ucranianos. Devia ter 3 ou 4 anos, não me recordo. Lembro-me vagamente de ver meu pai conversando com aqueles homens bem brancos que eram conhecidos como “bichos d’agua”. Também mostrava-lhes as onças-pintadas que eu desenhava. Pelo menos eu achava que eram perfeitas…Eles bondosamente concordavam.
Passados alguns anos minha família mudou-se para a zona sul. Um belo dia apareceu em casa um velho conhecido: um padeiro ucraniano da Vila Bela. Foi uma conversa muito agradável. Melhor ainda, que ele decidiu ensinar como fazer sonhos. De lá pra cá sempre os adorei. Comprava-os para meus filhos. Para todos. Inexplicavelmente, alguns dizem por aqui que eram especialmente para a filha “favorita”. Quem tem filhos sabe do que estou falando. Eles sempre acham que há um “favorito”. Difícil entender a garotada.
Depois disso só voltei a lembrar dos ucranianos quando, aos 17 anos, comecei a viver conforme a fé católica estudando sua doutrina e sua história. Concretamente, acompanhava o desenrolar do Concílio Vaticano II. Ao mesmo tempo fui ficando ciente do que ocorria com todos os povos que viviam nos países da cortina de ferro. Foi então que ouvi falar em Josyf Slipyi. Homem de fé pujante, fora nomeado bispo coadjutor por Pio XII, para a arquidiocese de Lviv, em 1939. Cinco anos depois, com a morte do prelado da cidade, passou a ser seu arcebispo. Como a gloriosa Ucrânia tinha sido invadida pelos nazistas em 1941 o prelado ficou sob supervisão policial. Foi várias vezes interrogado pela Gestapo.
No fim da Guerra seu país foi invadido pela URSS de Stalin. Mudaram os algozes, continuou a perseguição. De início branda, pois interessava aos soviéticos não assustar os aliados. Contudo, dois meses depois do desastre da Conferência de Yalta, na qual foi aceita que a Ucrânia passaria para o domínio bolchevista, tudo ficou mais sombrio. O arcebispo foi preso em abril de 1945 e foi deportado para a Sibéria. Só foi libertado em 1963 por interferência do Papa S. João XXIII. Ainda teve tempo de participar de três sessões do Concílio. Era um símbolo vivo da resistência aos dois piores regimes que já tinham existido na história: o totalitarismo nazista de Hitler e o totalitarismo socialista de Stalin. Também viajou por vários países do mundo, inclusive o Brasil, para falar das atrocidades desses tiranos. Primeiro acompanhei suas falas pelos jornais. Depois tive a graça de conhecê-lo em uma conferência, no Brasil, feita em setembro de 1968. (1)
Na década seguinte fui morar um tempo nos EUA (1975-1978). Lá, por acaso, voltei a ter contato pessoal com ucranianos. A casa em que eu morava, em Yonkers, Nova Iorque, era próxima de uma igreja deles. Lá participei de várias missas.
Um belo dia alguns amigos católicos convidaram-me para visitar uma outra paróquia ucraniana. Não me lembro mais se o objetivo era propagar um manifesto em defesa da Ucrânia ou se era para divulgar uma revista de orientação católica defendendo a liberdade dos povos escravizados pelo comunismo soviético. De qualquer modo lembro vivamente que encontrei um simpático monsenhor que me atendeu de modo muito cordial. Em certo momento ele me perguntou de onde eu era, e ficou surpreso quando disse que era brasileiro. Ele indagou: – “mas, então, por que você está aqui defendendo ucranianos”? Minha resposta jorrou de meus lábios: – “Porque vocês são nossos irmãos!” Os olhos do monsenhor lacrimejaram. Olhamo-nos profundamente. Realmente sentíamos que éramos filhos amados do mesmo Pai.
Ontem foi ocasião de me comover novamente. Ucranianos que foram pisoteados por nazistas e comunistas voltam a ter sua pátria invadida e suas liberdades ameaçadas por uma Rússia que mantém seu sonho imperial.
Aqui só posso expressar minha solidariedade a todos os heroicos ucranianos e seus descendentes brasileiros; solidariedade com minhas lágrimas de tristeza pelo novo sofrimento pelo qual passam. Sei que pouco podemos esperar dos fracos líderes do ocidente. Como disse o Papa Francisco, é hora de oração, jejum, penitência. E uma santa inconformidade com um mundo cada vez mais longe de Deus. Quanto aos ucranianos, cremos que eles irão saber unir seus sofrimentos aos de Cristo. Eles certamente sabem, melhor do que nós, que Deus e Nossa Senhora de Zarvanytsia não irão desampará-los. (2)
(https://folhavponline.com.br/2022/02/vila-bela-teve-missa-pela-paz-na-ucrania/)
Notas.
- Foi nomeado cardeal por S. Paulo VI. Morreu em 7 de setembro de 1984. Está enterrado na catedral de Lviv. .
- Curiosamente Nossa Senhora de Czestochowa, padroeira dos poloneses, é também tida como padroeira dos ucranianos.