PSICOLOGIA, SAÚDE, NORMALIDADE SOMOS NORMAIS?
O site olivereduc.com publica artigos da área de humanidades. Com frequência você vê, aqui, artigos sobre direito, política, história, educação, economia, etc. Não me recordo se já foi postado algum artigo de psicologia.
Tendo em vista a importância desta ciência achamos por bem começar a divulgá-la. Mais ainda sabendo que problemas psicológicos têm afetado setores cada vez mais amplos da sociedade. Não poupando crianças, jovens, adultos ou idosos.
Por isso mesmo decidimos postar um artigo em que o autor explica quando podemos nos considerar “normais” e o que é “saúde mental”
É também uma forma de homenagear minha querida filha Anna Cecília que iniciou neste ano seu curso de graduação em Psicologia (Olivereduc.com).
NORMALIDADE E SAÚDE MENTAL
Dentre as muitas indagações apresentadas ao psicólogo, creio que a mais frequente se refere à distinção entre normalidade ou saúde mental, e anormalidade psíquica. Questionamo-nos sobre nossa saúde mental. Empresários criam estratégias para aferir a qualidade da saúde mental de seus funcionários. Na educação dos filhos, o cuidado dos pais para que o processo evolutivo culmine na saúde mental está entre os mais relevantes. Uma vez que se trata de tema de inquestionável importância, o que se entende por normalidade psíquica?
A organização Mundial de Saúde (OMS) define a normalidade como um estado de “completo bem-estar físico, mental e social”. Esta definição traz o peso e a importância da instituição que a apresenta. É positivo o fato de superar certa visão simplista de saúde mental como a mera ausência de doença. Acentua-se o bem-estar integral, enumerando as dimensões física, psíquica, e as interações sociais. Contudo, esta definição tem sido alvo de críticas por preconizar, para a normalidade, “um estado de completo bem-estar”. Semelhante definição tende à ampliação da anormalidade psíquica. Para a OMS não é suficiente o bem-estar. Exige-se um estado utópico de completo bem-estar integral, o que nos parece humanamente inatingível. Há muitas formas de desconforto, nas áreas citadas, que fazem parte da normal condição humana, e com as quais é necessário habituar-se a viver. A ampliação da anormalidade psíquica, nestes termos, poderá conduzir a uma equivocada medicalização ou medicamentalização da vida, interpretando todo mal-estar como sintoma de doença psíquica ou somática.
Para compreensão de normalidade, um recurso é a pesquisa em dicionários. Muito aceita é a definição apresentada por Robert Campbell[1], para quem “é psicologicamente normal a pessoa que está em harmonia consigo mesma e com o ambiente. Vive em conformidade com as exigências ou imposições culturais de sua comunidade. Esta pessoa pode possuir alguma enfermidade ou desvio orgânico, mas desde que não impeça sua capacidade de raciocínio, julgamento, intelectual, e a habilidade de harmônica adaptação pessoal e social, poderá ser considerada saudável e normal” (Campbell 1996, p. 484).
No verbete saúde mental Campbell acentua a capacidade de adequado ajustamento aos padrões comunitários, especificamente quanto às relações humanas (1996, p. 316), e apresenta algumas características de saúde mental: autoconfiança; autocontrole; habilidade para trabalhar; habilidade para assumir responsabilidade e realizar os esforços necessários; confiança; persistência; habilidade para convivência e trabalho conjunto; habilidade para trabalhar sob autoridade, regras e dificuldades; capacidade de expressar amizade e amor; tolerância para com os outros e diante das frustrações; habilidade para divertir-se, gosto por hobbies. Como se percebe, a normalidade ou saúde mental para Campbell implica na harmonia consigo e no ajustamento sociocultural, que requerem o desenvolvimento de variadas habilidades ou capacidades.
No contexto psicanalítico (Kaplan & Sadock 2008, p. 32-33), alguns autores se referem a normalidade como ausência de sintomas, conjuntamente com a aquisição da capacidade de trabalhar e de se divertir. Freud colocou a capacidade de amar e trabalhar como indicativos de normalidade psíquica. Há outros autores, de concepção psicanalítica, cuja conceituação de normalidade pode ser assim resumida (Kaplan & Sadock 2008, p. 33):
- Sigmund Freud: A normalidade é uma ficção idealizada;
- Melanie Klein: A normalidade se caracteriza por força de caráter, capacidade de lidar com emoções conflitantes, capacidade de experimentar prazer sem conflitos e capacidade de amar;
- Erik Erikson: Normalidade é a capacidade de dominar os períodos da vida: confiança x desconfiança, etc.;
- Laurence Kubie: A normalidade é a capacidade de aprender pela experiência, de ser flexível e de se adaptar a um ambiente inconstante;
- Karl Menninger: A normalidade é a capacidade de se adaptar ao mundo externo com contentamento e de vencer a tarefa da aculturação;
- Alfred Adler: A capacidade da pessoa de desenvolver sentimentos sociais e de ser produtiva está relacionada à saúde mental. A possibilidade de trabalhar eleva a auto-estima e torna o indivíduo capaz de se adaptar;
- R.E. Money-Kryle: A normalidade é a capacidade de ter insight sobre si mesmo, algo que nunca é inteiramente realizado;
- Otto Rank: A normalidade é a capacidade de viver sem medo, culpa e ansiedade e de assumir responsabilidade por seus próprios atos.
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), da American Psychiatric Association, que se tornou referência mundial para o diagnóstico psiquiátrico, embora não apresente conceituação de saúde mental, oferece elementos que nos orientam na busca por elucidação, a partir da definição de transtorno mental (DSM-5 2014, p. 20). Quanto à presença ou ausência de saúde mental, segundo o DSM-5, deve-se observar o nível de ajustamento ou de perturbação na cognição, na regulação emocional ou no comportamento. Além disso, a fragilização da saúde mental está associada frequentemente a sofrimento e incapacitação, que afetam as atividades sociais, profissionais e outras atividades importantes. Percebe-se que o DSM-5 coloca em relevo o nível de bem-estar psíquico, a qualidade do pensamento, do equilíbrio emocional, e o ajustamento comportamental. A fragilização nestas áreas irá, evidentemente, se refletir nas relações interpessoais e na capacidade de desenvolver uma satisfatória atividade laborativa.
Um autor que apresenta uma compreensão satisfatoriamente elaborada de personalidade normal é Otto Kerneberg[2]. Para este autor, a personalidade normal é caracterizada, antes de tudo, por um conceito integrado de si e do outro significativo. São características estruturais, que oferecem a sensação interior e a aparência exterior de coerência consigo, sendo condições fundamentais para o desenvolvimento da normal auto-estima, satisfação e alegria de viver. A visão integrada de si assegura a capacidade de realizar desejos, aspirações e projetos a longo termo. A visão integrada do outro garante a capacidade de avaliar adequadamente as pessoas, de experimentar empatia e de investir emotivamente em relacionamentos interpessoais, com a saudável capacidade de intercâmbio afetivo.
Uma segunda característica da personalidade normal para Kernberg é a força do Ego, que se reflete na disponibilidade afetiva, na capacidade de controlar as emoções e os impulsos e na capacidade de sublimação no trabalho e nos valores. A força do ego possibilita, ainda, coerência, perseverança e criatividade no trabalho e nas relações interpessoais, bem como a capacidade de ter confiança, de condivisão e de empenhar-se nas relações com os outros.
Um terceiro aspecto da personalidade normal é um Superego integrado e maduro. Para a psicanálise, o superego é a instância interior que tem a responsabilidade do juízo sobre o que é certo e errado. Assemelha-se ao conceito de consciência. A personalidade normal, nestes termos, será marcada pelo senso de responsabilidade pessoal diante dos deveres a serem cumpridos, pela capacidade de uma realista autocrítica, pela integridade e flexibilidade ao tratar os aspectos éticos das decisões a serem tomadas, e pelo respeito às normas sociais, aos valores e ideais.
Um quarto aspecto da personalidade normal, para Kernberg, é a orientação apropriada, equilibrada e satisfatória dos impulsos agressivos e da libido. Isto implica a capacidade de exprimir plenamente as próprias necessidades sensuais e sexuais integradas com a ternura e o envolvimento emotivo para com a pessoa amada, além de um grau normal de idealização do outro e da relação. Quanto à agressividade, uma estrutura de personalidade normal inclui a capacidade de sublimá-la.
Esta reflexão permite afirmar que são muitos os elementos envolvidos na conceituação de normalidade ou saúde mental. Alguns princípios norteadores são a sensação de bem-estar interior, a capacidade de flexibilidade e ajustamento social; adquire-se a maturidade necessária para o desenvolvimento de saudáveis relações interpessoais, marcadas pela amizade e o amor, a habilidade para a cooperação e o trabalho conjunto. Há o respeito pelas leis que norteiam a vida em comum, e o desenvolvimento de um sistema de valores. Estes recursos são consequência de um satisfatório processo evolutivo, com a aquisição da maturidade na capacidade de pensar, na esfera emotiva e no comportamento. A saúde mental jamais será uma aquisição plena e definitiva. A psique humana está em contínuo processo de maturação ou de adoecimento. Depende de cada pessoa e da qualidade do cuidado consigo mesmo.
Referências:
CAMPBELL, Robert. Psychiatric Dictionary. New York: Oxford University Press, 1996.
CLARKIN, J.F.; LEZENWEBER, M.F. (Org.). I disturbi di personalità: Le cinque principali teorie. Milano: Raffaello Cortina Editrice, 1997.
DSM-5. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Porto Alegre: Artmed, 2014.
SADOCK, Benjamim; SADOCK, Virginia Acott. Compêndio de Psiquiatria: ciência do comportamento e psiquiatria clínica. Porto Alegre: Artmed, 2007.
[1] Psychiatric Dictionary, 484.
[2] Conferir Clarkin, J.F.; Lenzenweber, M.F.; ed., I disturbi di personalità: Le cinque principali teorie, Milano 1997. Dados biográficos: Otto F. Kenberg nasceu em Viena em 1928. No Chile estudou medicina e depois psiquiatria e psicanálise. Foi para Nova York na década de 60 para estudar e lá permanece até hoje. Exerceu a função de presidente da Associação Psicanalítica Internacional.
José Carlos dos Santos é também sacerdote. É licenciado em filosofia pela PUC Minas e pós-graduado em filosofia contemporânea pela mesma instituição (1994). Pela Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, Itália, graduou-se bacharel em Psicologia (2001), e na mesma Universidade fez o mestrado em Psicologia clínica (2003). Na sua área escreveu “Psicologia e Desenvolvimento Moral da Pessoa, Edit. D. Viçoso, 2018.