CABELOS BRANCOS

Introdução do olivereduc

Diante do avanço revolucionário no mundo contemporâneo muita gente desanima e pensa em deixar de lutar. – “Não adianta dizem, eles dominam toda a sociedade, de alto a baixo, nos mais variados campos”. É o peso da luta que lhes parece cada vez mais desigual.

De certo modo têm uma certa razão. Contudo, ao olhar para as fraquezas que encontram em suas fileiras, nem sempre percebem quanto o lado revolucionário também tem encontrado dificuldades que provocam preocupação e desânimo em seus teóricos e militantes.  

É o que você vai ver no artigo de frei Betto que reproduzimos aqui.

Artigo publicado no ihu.unisinos em 22 Abril de 2024

Frei Betto

‘Minha geração envelhece. Chego este ano aos 80. Nossas ideias, propostas e utopias, também envelhecem?”, pergunta Frei Betto, escritor, autor de Diário de Fernando: nos cárceres da ditadura militar brasileira (Rocco), entre outros livros.

Segundo ele, “nossos cabelos brancos denunciam o inverno que nos acomete. É hora de uma nova e florida primavera!”

Eis o artigo.

“Participei em Belo Horizonte, no início de abril, do 12º encontro nacional do Movimento Fé e Política. Quase duas mil pessoas. Ao contrário dos encontros anteriores à pandemia, poucos jovens. A maioria de cabelos brancos ou tingidos.

Minha geração envelhece. Chego este ano aos 80. Nossas ideias, propostas e utopias, também envelhecem?

É muito preocupante constatar que as forças progressistas não logram renovar seus quadros. Para vice de Boulos, na disputa pela prefeitura de São Paulo, em outubro próximo, o PT precisou importar uma mulher filiada a outro partido: Marta Suplicy, que fará 80 anos em março de 2025. No Rio, o PT parece não ter quem indicar para possível vice na chapa do prefeito Eduardo Paes, candidato à reeleição. Tende a importar Anielle Franco, do PSOL.

Tenho proferido conferências pelo Brasil afora e assessorado movimentos populares. Os cabelos brancos predominam na plateia. As poucas manifestações públicas convocadas pela esquerda reúnem um número inexpressivo de pessoas e, em geral, a turma dos cabelos brancos.

Nós, da esquerda, estamos acuados. Como diz a canção de Belchior, “minha dor é perceber / que apesar de termos feito / tudo, tudo, tudo, tudo que fizemos / ainda somos os mesmos e vivemos (…) como os nossos pais”. “Nossos ídolos ainda são os mesmos”. E não vemos que “o novo sempre vem”.

A queda do Muro de Berlim abalou as nossas esperanças em um mundo onde todos teriam a sua existência dignamente assegurada.(1). E o capitalismo, gato de sete fôlegos, inovou-se pelos avanços da ciência e da tecnologia e, sobretudo, do neoliberalismo.

Primeiro, a privatização do patrimônio público; em seguida, das instituições sociais, reduzidas a duas por Margaret Thatcher: o Estado e a família. E, por fim, o cidadão foi despido de seu manto aristotélico e condenado a ser mero consumista, inclusive de si mesmo ao passar horas a se mirar no espelho narcísico das redes digitais.

BBB: Espelho do sistema capitalista.

Há uma progressiva despolitização da sociedade. A direita é como uma maré que sobe e ameaça afogar o que nos resta de democracia liberal. Basta dizer que um dos três programas de maior audiência da TV Globo e, portanto, de faturamento, é o BBB, que bem espelha os tempos em que vivemos: ali são explícitas as regras do sistema capitalista (2). O único objetivo é competir. Todos sabem que, ao final, apenas uma pessoa haverá de amealhar o pote de ouro. E a missão dos concorrentes é cada um fazer tudo para que seus pares sejam eliminados. É o que milhões de adolescentes aprendem ao perder horas assistindo àquele simulacro de “O anjo exterminador”, de Buñuel.

Os erros da esquerda

Na esquerda “ainda somos os mesmos”. Não semeamos a safra de novos militantes com medo de que eles se destacassem e ocupassem as nossas instâncias de poder. Abandonamos as favelas, as zonas rurais de pobreza, os movimentos de bairros. E não aprendemos a atuar nas trincheiras digitais, monopolizadas pela direita como armas virtuais da ascensão neofascista (3).

Os grandes males a enfrentar

Não sabemos como reagir diante do fundamentalismo religioso que mobiliza multidões, abastece urnas, elege inclusive bandidos notórios. Fundamentalismo que apaga as desigualdades sociais e as contradições de classe e ressalta que tudo se reduz à disputa entre Deus e o diabo. Todo sofrimento decorre do pecado. Eliminado o pecado, irrompe a prosperidade, que empodera e favorece o domínio: a confessionalização das instituições públicas; a deslaicização do Estado; a neocristandade que condena à fogueira da difamação e do cancelamento todos que não abraçam “a moral e os bons costumes” dos que clamam contra o aborto e homenageiam torturadores e milicianos assassinos. (4)

Precisamos fazer autocrítica, rever nossas ideias, ter a coragem de abrir espaços às novas gerações e reinventar o futuro. Nossos cabelos brancos denunciam o inverno que nos acomete. É hora de uma nova e florida primavera!

Notas

1.É uma afirmação espantosa. Muitos na esquerda dizem que não se pode confundir o socialismo real, aquele além da cortina de ferro, com o socialismo proposto por Marx e que fora desvirtuado. Frei Betto não tem pejo em dizer o contrário, ou seja, aquele socialismo despótico era a esperança que nutriam e que daria a todos “uma existência dignamente assegurada”! É sério?

    2. Curioso ver o que é apresentado como sistema capitalista: luta feroz de todos contra todos É conforme uma certa lógica marxista, é verdade, com seu dogma da luta de classes. Nem uma palavra sobre como o sistema, mesmo com falhas, contribuiu para diminuir a pobreza no mundo. Por outro lado, é curioso ver que em uma ótica conservadora, as novelas da Globo, o BBB, as pornochanchadas da Band no tempo do regime militar, em vez de ajudar a termos uma sociedade mais livre, contribuiu para formar fileiras de esquerdistas e descristianizar a sociedade com a agressão a valores familiares. Fato reconhecido até mesmo por diretores de certas novelas. Na própria Globo.

    3. Associar capitalismo a fascismo e nazifascismo é próprio de uma negação da história e da ciência política. Qualquer manual razoável de Ensino Médio ensina que o nazifascismo era crítico do capitalismo e da democracia liberal. Na realidade, o uso errado da linguagem faz parte da propaganda e das táticas dos socialistas.

    4. O vilão “fundamentalismo religioso” elege “bandidos” …Você e eu certamente não percebemos que a esquerda elege santos. Somos pouco perceptivos… Finalmente Frei Beto resolve desancar a “neocristandade” que seria formada por um bando de difamadores que “cancela” quem não pense conforme os bons costumes. A esquerda não cancela ninguém, não é Frei Betto?

    Os cabelos brancos realmente mostram o inverno que cobre a esquerda.

    5. Os destaques em negrito e os subtítulos foram colocados pelo olivereduc.

    Fonte:

    https://www.ihu.unisinos.br/categorias/638672-cabelos-brancos-artigo-de-frei-betto

    Artigo publicado no ihu.unisinos em 22 Abril de 2024

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