Nivaldo Cordeiro 21/05/2003
Na recente visita que fiz à Itália (1), depois da missa de Páscoa, celebrada pelo papa na Praça de São Pedro, fui visitar a Basílica de São Paulo, local onde a tradição reconhece que o “Apóstolo dos Gentios” foi enterrado. Fiquei duplamente surpreso: pela beleza da igreja e pela representação que se faz de Paulo: sua estátua (não consegui descobrir o artista que a esculpiu) retrata um homem idoso e severo, que traz na mão esquerda as escrituras e, na direita, uma espada em riste. Um santo guerreiro. É o oposto das tradicionais representações cristãs de seus santos e mártires, quase sempre resvalando para uma retratação sentimental e sofredora, inteiramente passiva. A minha reverência por Paulo aconteceu desde que comecei a tatear os textos bíblicos e se amplia a cada dia. É uma admiração que não se esgota no religioso, mas que se estende ao escritor, ao pensador, ao polemista, ao orador e, sobretudo, ao caráter inquebrantável de uma vontade férrea. Paulo tinha consciência da tradição judaica e da filosofia grega, mas teve a Revelação na visão a caminho de Damasco, que o levou a sintetizar ambas as tradições. É o arquétipo do cristão, pessoa que juntou em si ação e reflexão, fé e razão. Nunca um homem enfeixou em si as linhas do tempo de forma tão intensa, inaugurando uma nova era. É impossível imaginar o cristianismo sem a figura carismática e viril do grande apóstolo. Não casualmente que Paul Johnson, no seu História do cristianismo, começa a narrativa com Paulo de Tarso se dirigindo a Jerusalém para participar do Concílio com os seguidores sobreviventes de Jesus. Ali se decidiu o destino da fé cristã e mesmo o de todo o mundo ocidental. Paulo foi o grande vencedor do embate de idéias, livrando o cristianismo de ser apenas mais uma obscura seita judaica, condenada a se esfumar nas dobras do tempo. “Deus não faz acepção das pessoas” é a mais bela frase que um homem de Deus poderia proferir. Paulo o fez com veemência e levou a mensagem (e a salvação) de Cristo ao mundo. Entrei na Igreja quase abandonada naquele dia de festa em que todos se concentravam no templo dedicado a Pedro. Não deixa de ser paradoxal: no Dia de Glória da fé cristã o seu grande apóstolo ficou de lado. Pude assim, com calma, impossível no Vaticano, percorrer suas intermináveis fileiras de colunas, apreciar os detalhes da decoração, extasiar-me com a estupenda visão do interior da igreja, ricamente decorada em dourado, considerada por alguns como a mais brilhante das igrejas de Roma. Foi um privilégio particular que usufruí. A espada na mão do apóstolo é mais do que uma metáfora de sua ação no mundo. Podemos aqui lembrar da frase do Apocalipse de João, a de que “da boca do Cordeiro sai uma espada afiada, de dois gumes”. Assim era Paulo. Sua força com a palavra, oral ou escrita, é algo maiúsculo. Suas epístolas são peças sem igual na literatura mundial. É toda a fé que lá está, é toda a capacidade de conversão que lá está, é o testemunho de como o espírito pode inspirar um homem escolhido para instrumento da obra de divina. O discurso relatado por Lucas, proferido por Paulo no Areópago aos atenienses, falando do deus desconhecido dos gregos, é de uma força inigualável, sendo uma amostra do que devem ter sido os seus fogosos discursos que se perderam no tempo. Claro que imediatamente comprei uma imagem de Paulo, retratada com as mãos ocupadas com a espada e com as escrituras, que hoje ocupa o lugar de honra em meu escritório, ao lado do Cristo crucificado. Olho-a com carinho. É um ícone que representa tudo aquilo que entendo de mais refinado, mais carismático e mais verdadeiro dentro do cristianismo. Notas 1. Artigo escrito em 21/05/2003 |