Cícero Harada 01/06/2009
O clima político no Brasil não condiz com o terceiro mandato de presidente, governadores e prefeitos, contrariamente ao que ocorre em muitas republiquetas de perfil autoritário e golpista. Embora a pesquisa Datafolha do fim de maio último tenha indicado aumento da popularidade de Lula (69%), ainda 49% são contra e 47% favoráveis a uma nova reeleição do presidente.
O deputado Jackson Barreto (PMDB-SE) da base aliada, contudo, reapresentou Proposta de Emenda Constitucional (PEC nº 373/2009) que reuniu 176 assinaturas de parlamentares, 5 a mais que o mínimo necessário de 171, visando a alterar o § 5º do artigo 14 da Constituição Federal e possibilitar mais uma reeleição de presidente, governadores e prefeitos. Prevê a proposta em seu artigo 2º que a promulgação da emenda depende de referendo popular a ser realizado no segundo domingo de setembro de 2009. A PEC nº 373/2009 começou a tramitar no dia 5 de junho. O presidente da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) designou como relator o deputado José Genoíno (PT-SP). O líder do DEM na Câmara, Ronaldo Caiado (GO), até tentou barrar a proposta, alegando que Barreto teria “reciclado” as assinaturas, por reaproveitá-las da proposta anterior a ele devolvida por não ter conseguido a adesão de 171 deputados.
A PEC, além de vulnerar a forma republicana de governo, cláusula pétrea, não terá tempo hábil, se obedecidos os prazos regimentais, para ser aprovada por três quintos dos 513 deputados e 81 senadores, em dois turnos na Câmara dos Deputados e dois turnos no Senado e ser submetida ainda a referendo popular até o segundo domingo de setembro. Recorde-se que o artigo 16 da Constituição estabelece que “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”. Poder-se-ia alegar que aqui a alteração é constitucional e não legal. É bom lembrar, contudo, que o Supremo já decidiu na ADI nº 3.685-8 que o artigo 16 representa garantia do cidadão-eleitor contra alterações abruptas das regras da disputa eleitoral, pois contém elementos que o caracterizam como garantia fundamental oponível até mesmo à atividade do legislador constituinte derivado (arts. 5º, § 2º e 60, § 4º, IV da Constituição Federal). A ofensa ao artigo 16 da Constituição afronta os direitos individuais da segurança jurídica (CF, art. 5º, caput) e do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV).
A proposta sob o aspecto jurídico é natimorta. Ela carrega em si, no entanto, muito dos perigos da realidade e da esperteza políticas. É exceção excepcionalíssima o detentor do poder que tenha tal desapego ao cargo, que renuncie a um terceiro, quarto, quinto mandatos. É preciso que as instituições sejam fortes o bastante para impedir casuísmos e a perpetuidade do poder. Hamilton em O Federalista e Tocqueville em A Democracia na América concluem que os inconvenientes superam as vantagens da reeleição. Nos Estados Unidos a XXII Emenda à Constituição proibiu o terceiro mandato.
Entre nós, o alto clero não ousa afirmar que é favorável, mas contrário à nova reeleição. Querem mesmo fazer crer que o assunto é um “pseudotema”, um “factóide” criado por oposicionistas. O fato é que a PEC está tramitando. A democracia e a república não combinam com o terceiro mandato. A falta de alternância do poder é própria dos regimes totalitários, autoritários e das ditaduras.
Lula diz ser contra o terceiro mandato, que não discute essa hipótese, até porque Dilma vai bem. Na Venezuela, apoiou a reeleição ilimitada de Chaves e de outros cargos eletivos, desde que a decisão seja do povo. Explicou que “o Brasil não está preparado para pensar em reeleição sem limites, pois tem uma democracia recente”. E completou: “acho que nós estamos em um processo de construção, de fortalecimento das instituições no Brasil. Isso não impede que daqui a algum tempo apareça um partido político ou um conjunto de deputados que proponha mudar a lei que proíbe ter apenas uma reeleição, que pode ter três, quatro reeleições”. Considera muito “engraçado que as críticas que fazem aos presidentes da América Latina que querem um terceiro mandato não se fazem aos primeiros-ministros na Europa que ficam 16 ou 18 anos”.
Contrariamente ao que já se disse, Lula não é “caótico”. O seu “caos” camufla a esperteza política. Se o país não está “preparado”, porque não existem condições objetivas para o terceiro mandato, nada melhor do que a ambiguidade. Traz exemplo do parlamentarismo europeu que não se coaduna com o presidencialismo. Suscita a discussão da democracia direta, mas “a Constituição submete a todos, inclusive o povo”. É contra o terceiro mandato, porque a Dilma vai bem. E se ela for mal? Aí está o grupo de deputados que propõe o terceiro mandato. Apenas um balão de ensaio?
“Não se brinca com a democracia”, afirmou Lula. Diante dessa PEC inconstitucional, afrontosa à República e à Democracia, o mínimo que se espera é que ele admoeste com firmeza a base de sustentação do governo a fim de que pare de brincar com coisa séria. Ou será que as alterações das condições objetivas estão em curso, para que o Brasil “preparado” testemunhe o presidente reprisar a assertiva feita no lançamento do PAC da saúde? Se o terceiro mandato for o plano A, ele poderá repetir: “sou uma metamorfose ambulante”!
Comentário do Blog: O deputado José Genoíno arquivou o projeto de lei sobre o terceiro mandato. Contudo, é bom lembrar que cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém.
*Cicero Harada – Advogado, Conselheiro da OAB-SP, Presidente da Comissão de Defesa da República e da Democracia da OAB-SP, foi Procurador do Estado de São Paulo. |