Denis Lerrer Rosenfield
22/06/2009
O País tem-se defrontado nos últimos anos com aparentes incoerências entre o que se convencionou chamar de lulismo e a política propriamente petista. Sob a primeira rubrica estão incluídos o pragmatismo do presidente, a sua popularidade, a manutenção da política macroeconômica do governo anterior e seu espírito de conciliação. Sob a segunda rubrica está incluída a política do PT, baseada em propostas radicais, como se com a esquerda no poder devesse ter ocorrido, como se dizia, o banimento de tudo o que estava aí. Nesse contexto, com a eleição de Lula ficou particularmente manifesto o despreparo do PT para governar, não tendo uma ideia que pudesse ser viabilizada concretamente do ponto de vista da administração de um Estado fundado na economia de mercado, na democracia representativa, com uma sociedade civil forte e voltado para a internacionalização de suas relações econômicas. Uma proposta de esquerda radical tornou-se, assim, inútil, salvo naqueles setores do Estado em que houve concessões às bandeiras de antanho, como no setor rural, com apoio ao MST e aos ditos movimentos sociais em geral, ou no aparelhamento do Estado. Logo, produziu-se uma esquizofrenia. Para ganhar as eleições e administrar foi necessário que Lula abandonasse as propostas históricas de seu partido, dando vazão ao que se convencionou, na falta de palavra melhor, chamar de lulismo. O PT, por sua vez, não seguiu, em seu conjunto, esse processo, continuando a se pautar segundo propostas de uma esquerda radical, com apoio às invasões dos ditos movimentos sociais, à Chávez, em seu projeto totalitário, e procurando sempre relativizar a propriedade privada. Ou seja, o PT não se renovou doutrinariamente, enquanto Lula optou por governar ao sabor das ideias e conjunturas que lhe foram sendo apresentadas. Aos trancos e barrancos, o lulismo encaminhou-se para um tipo de social-democratização, abandonando as ideias da esquerda radical, administrando o Estado segundo os princípios de uma economia capitalista, reconhecendo as leis do mercado e desenvolvendo o seu lado social, com o Bolsa-Família. Isso explica, aliás, os problemas com que se defronta o PSDB, pois, num certo sentido, as bandeiras são as mesmas, embora em propostas partidárias distintas. Os tucanos ficaram sem ideias. O PT, no entanto, foge do conceito de social-democracia como o diabo foge da cruz. Acontece que para fazê-lo deve recorrer a um discurso radical, que, paradoxalmente, seu próprio governo procura evitar. Pode-se, nesse sentido, dizer que o processo político em que estamos inseridos é o que se poderia chamar de uma social-democratização perversa. Por que perversa? Uma vez que não há convergência doutrinária e política entre o PSDB e o PT, em que ambos os partidos colaborariam num projeto comum, apesar de manterem rivalidades eleitorais e pessoais, Lula enveredou por dois caminhos, procurando equilibrar-se entre ambos: o de uma aproximação com o PMDB e o de manutenção de propostas radicais nas diferentes formas de relativização da propriedade privada, que se traduzem na sustentação dada aos ditos movimentos sociais. O movimento em direção ao centro do espectro político, na ausência de uma parceria com os tucanos, adotou as formas da cooptação, do fisiologismo e da corrupção. As alianças partidárias foram estabelecidas com os setores mais propensos a seguir tais práticas, cuja perversidade mais manifesta se encontra no enfraquecimento das instituições republicanas. Em particular, a Câmara dos Deputados e o Senado foram vítimas desse processo perverso de “contratação” de alianças. Os setores ditos autênticos do PMDB, com toda uma história de afirmação da democracia e das instituições, foram simplesmente alijados e são precisamente os que poderiam seguir um processo de social-democratização. Os setores privilegiados foram os que aceitaram a barganha e as escusas negociações. O mesmo movimento ocorreu com as outras legendas da base aliada, que são partidos satélites dessa “política”, em que o bolso de parlamentares parece contar mais do que o bem público. A corrupção, nesse sentido, é fruto dessa social-democratização perversa. O governo continuou, também, a dar satisfação ao seu partido e aos movimentos sociais, como se, aqui, se estabelecesse uma linha de continuidade com a sua própria história. O PT, em seu site e em seus documentos, mantém um discurso radical, dando às vezes a impressão de que o seu governo não é verdadeiramente seu. A leitura desses textos é como se fosse uma visita às discussões de esquerda da primeira metade do século 20, com as diatribes entre revolucionários e reformistas, tendo como parâmetro o marxismo. É uma viagem no tempo, sobretudo nos textos teóricos. Evidentemente, há setores petistas que procuram desvencilhar-se desses entulhos dogmáticos, mas a tendência predominante continua a ser essa. Acontece que essas posições terminaram igualmente por se fazer presentes – e, às vezes, fortemente presentes – no próprio aparelho de Estado e nas políticas implementadas. A sua forma mais palatável do ponto de vista da opinião pública foi a adoção do politicamente correto, como se uma mudança de palavras tivesse sido produto de uma mudança de significados, de uma renovação doutrinária. Assim, o MST, com suas propostas de cunho revolucionário e anticapitalista, foi apoiado e financiado, podendo agir como se o Estado de Direito a ele não se aplicasse. As questões quilombolas e indígenas, em vez de serem tratadas como questões de justiça social dentro de uma economia de mercado, tornaram-se a ocasião de a Comissão Pastoral da Terra e o Conselho Indigenista Missionário porem em ação a Teologia da Libertação, em sua mistura de marxismo e cristianismo. E, como desenlace, tivemos uma série de escândalos de corrupção e de desvio de recursos públicos. É o preço que estamos pagando por uma social-democratização perversa. |