Boris Fausto 16/01/2010
Em meio a uma conversa despretensiosa, um amigo me pergunta: como você acredita que Lula e seu governo serão avaliados no futuro? Evitei dizer que assuntos do futuro se situam no campo das projeções dos cientistas políticos, enquanto os historiadores lidam com o passado. Preferi enfrentar a questão, embora a resposta seja difícil, na melhor das hipóteses.
Isso por duas razões principais, e a primeira é bastante óbvia. A carreira política do presidente Lula não está encerrada. Não só porque ele tem ainda um ano de mandato, às voltas com o triunfo, custe o que custar, da sua candidata a presidente. Depois, porque não se sabe quem vencerá as eleições, afora a possibilidade, ao menos hoje vista como muito possível, de que Lula volte a se candidatar, nas eleições de 2014.
A outra dificuldade da resposta é menos óbvia e tem que ver com a constatação de que não existe “um veredicto da história”. Essa dama caprichosa flutua ao sabor das diversas interpretações, umas superando as outras e vice-versa, ao longo do tempo. Dois exemplos expressivos: Getúlio Vargas é lembrado, por um lado, como o pai dos trabalhadores, o ícone da industrialização, o doador da legislação trabalhista e, de outro, como o repressor das liberdades públicas, do direito de expressão e como introdutor da tortura de presos políticos.
Na Argentina, guardadas as diferenças, o mesmo acontece com o general Perón. Mais ainda, sua figura se projeta, retrospectivamente, no passado. O controvertido Juan Manuel de Rosas, que governou um país cuja unidade ainda não se realizara, em boa parte das décadas de 1830 e 1840, é visto como antecessor do nacionalismo personalista e do peronismo, tanto por peronistas como por liberais, mas com avaliações opostas. Assim, respectivamente, Rosas ganha as cores de um abominável caudilho ou de um notável precursor da construção da nacionalidade. É curioso notar, no caso de Getúlio, que a imagem positiva se impôs à negativa. Os aspectos condenáveis dos 15 anos do primeiro governo Vargas figuram em segundo plano, como evidenciam os textos publicados por ocasião dos 50 anos de seu suicídio.
Mas a pergunta de meu amigo abre caminho a outra abordagem: ela gira em torno das perspectivas da história imediata, voltada a um passado que é quase presente, e da história a ser escrita no futuro. Superada, nos dias de hoje, a questão da possibilidade de escrever a história do presente, convém lembrar as diferenças.
É verdade que quem vive ou viveu fatos muito recentes reflete nos escritos suas opiniões e mesmo suas paixões com maior intensidade. O historiador distanciado dos eventos tende a ser mais frio, mas dificilmente consegue introduzir em sua narrativa um elemento importante: o calor da hora. Outra diferença significativa é a inclinação do historiador do presente no sentido de ressaltar a trama da política cotidiana, enquanto o historiador do futuro tenderá a ignorar processos e fatos que para os contemporâneos são relevantes. Em certos casos, ele terá ainda a vantagem de poder pesquisar em arquivos hoje indisponíveis ou desconhecidos, como ocorreu, com alto rendimento, no caso da história da União Soviética.
A essa altura, vou ao tema da pergunta inicial lidando só com alguns aspectos mais significativos. No plano pessoal, o futuro deverá lembrar a extraordinária biografia de Lula, que já nos dias de hoje está a merecer uma análise equilibrada. Se os primeiros anos da biografia são conhecidos, quem se preocupará, no futuro, em responder a muitas questões que emergem quando a história de vida chega à fase adulta? Prevalecerá uma narrativa mítica ou outra que se preocupe em indagar como se deram as inflexões de sua carreira? Como um discurso com um verniz socialista – “verniz” porque seu conteúdo nunca foi explicitado – se converteu num extremado pragmatismo, para dizer o menos, que levou a alianças com Sarney, Collor, Renan Calheiros, Roberto Jefferson e tutti quanti, mas levou também à sensatez, no âmbito da política econômica e financeira?
Indo adiante, como serão vistos os dois mandatos sucessivos dos presidentes Fernando Henrique e Lula, que cobrem 16 anos da história brasileira? Esse tema, nos tempos atuais, é um instrumento da luta política desfechada pelo governo, mal refutado por uma oposição cujo fio parece perdido. Basta lembrar o rótulo da “herança maldita”, aplicado a um conjunto de reformas institucionais e medidas legislativas que deram bases de sustentação ao governo Lula. Penso que esse aspecto e outros como, por exemplo, a continuidade dos programas de transferência de renda, apesar de suas diferenças, tenderão a ser ressaltados no futuro.
Em suma, a meu ver, a perspectiva de continuidade tenderá a prevalecer sobre a da ruptura, significando que muitos dos traços específicos do governo Lula e do petismo ficarão na sombra. Arrisco dizer que a ocupação de milhares de cargos de confiança, o mais das vezes segundo critérios partidários; o avanço da corrupção em níveis nunca antes alcançados; e o aviltamento da vida política serão temas considerados menos relevantes. Não afirmo, obviamente, que essa tendência seja positiva, apenas acredito que ela irá se impor.
Por último, quem sabe num futuro mais serenado acadêmicos e jornalistas se dedicarão a temas como o da emergência de uma nova elite, formada de sindicalistas, mas não só deles, que chegou aos vários escalões do poder no bojo da ascensão de Lula. Ou ainda se voltarão para a imagem do presidente, para o conteúdo de suas falas, em que a imensa capacidade de se identificar com a grande massa deixa em segundo plano as tiradas reveladoras de uma monumental ignorância.
Boris Fausto, historiador, presidente do Conselho Acadêmico do Grupo de Conjuntura Internacional (Gacint-USP), é autor, entre outros livros, de História do Brasil (Edusp) |