Ives Gandra da Silva Martins *
Reza o artigo 233 da Constituição venezuelana: “Quando se produza a falta absoluta do Presidente eleito ou da Presidenta eleita antes de tomar posse, se procederá a uma nova eleição universal, direta e secreta dentro de 30 dias consecutivos seguintes. Enquanto se elege e toma posse o novo presidente ou a nova presidenta, se encarregará da presidência da República o presidente ou a presidenta da Assembleia Nacional”.
O falecido presidente Hugo Chávez não tomou posse após sua reeleição. Esta deveria ter ocorrido em 10 de janeiro de 2013, como determina o artigo 231 (o candidato eleito tomará posse em 10 de janeiro do primeiro ano de seu período constitucional). Por outro lado, Nicolás Maduro, de rigor, foi, até 10 de janeiro, o vice-presidente escolhido por Chávez. Não foi eleito pelo povo, já que artigo 236, inciso III, da Lei Maior daquele país, entre as atribuições do presidente da República, outorga-lhe a de “nomear e remover o vice-presidente executivo”.
Determina, ainda, a Carta Magna venezuelana, que “não poderá ser eleito presidente quem esteja em exercício no cargo de vice-presidente executivo” (artigo 229). Quando Chávez faleceu, estava na vice-presidência, por esdrúxula decisão da Corte Maior do país, Maduro, o atual candidato à presidência. Ora, como Hugo Chávez nunca tomou posse do novo mandato, com sua morte caberiam novas eleições e quem deveria ter assumido a presidência da República seria o presidente da Assembleia Nacional.
É de lembrar ainda que o artigo 328 da Lei Maior daquele país declara que as Forças Armadas “constituem uma instituição essencialmente profissional, sem militância política”.
Como se percebe, com a autonomeação para presidente do sr. Maduro, a Constituição venezuelana foi esfrangalhada pelos herdeiros de Chávez, dispostos a manter a qualquer custo o poder, com sucessivos golpes à sua Lei Maior
Tenho-me dedicado, há muitos anos, ao estudo de Constituições latino-americanas, desde a promulgação da brasileira. Fui convidado pelo governo paraguaio a proferir palestras, antes da promulgação de seu Texto Supremo, a fim de, com outros juristas das Américas, falar sobre a então recente Carta Magna nacional. Com Celso Bastos atendi ao procurador-geral do governo argentino, em consultas sobre as virtudes e os defeitos do processo constituinte brasileiro, ele que fora o encarregado pelo presidente Carlos Menem a deflagrar o processo que terminou por desaguar na atual Constituição da Argentina. Participamos, inclusive, de um programa de TV sobre a Constituinte de nosso vizinho.
Ainda em 2010, o Itamaraty promoveu a publicação de todos os textos latino-americanos, iniciativa do embaixador Jerônimo Moscardo, seguida de estudos de constitucionalistas do continente, inclusive meu.
O que me preocupa, hoje, é que, ao sabor dos humores e tendências ideológicas, esses Textos Máximos são manipulados, desfigurados, dilacerados por aqueles que usufruem o poder. Lembro a frase do presidente do Uruguai, José Mujica, ao apoiar a exclusão do Paraguai do Mercosul: “Nossa decisão foi não jurídica, mas política”. Tal decisão permitiu, sem o aval necessário daquele país, a entrada da Venezuela na comunidade sul-americana.
Acontece que o artigo 225 da Constituição paraguaia permite o afastamento do presidente em face do “mau desempenho de suas funções, (…) por maioria de 2/3 na Câmara dos Deputados e no Senado”. À evidência, a decisão que puniu o Paraguai por cumprir a sua Constituição não teve caráter jurídico. O país foi punido por ter afastado um companheiro de ideologia de seus aliados, sendo o correto Direito paraguaio visto como um empecilho, pateticamente violentado, na gráfica frase de Mujica “a decisão foi política, e não jurídica”
Parece-me de extrema gravidade a nomeação para a chefia do Executivo de alguém não eleito pelo povo. É um duro golpe na credibilidade de que aquele país vive um regime democrático.
O fato de Maduro utilizar-se de um cadáver como seu cabo eleitoral e explorar a emotividade do povo, amputando o direito da oposição com perseguições aos meios de comunicação e prisões políticas de pessoas contrárias ao seu governo, não poderá legitimar nunca sua nomeação. O “processo de eleição” está viciado, já que não presidido pelo presidente da Assembleia Nacional, mas pelo próprio Maduro e com o apoio escancarado das Forças Armadas, que constitucionalmente são proibidas de se manifestar sobre política. E concorre, tendo sido vice-presidente, até sua autonomeação como presidente!
O melancólico papel do Tribunal Superior de Justiça (artigo 262 da Constituição da Venezuela), formado por amigos do falecido presidente, que, devendo assegurar o predomínio da Constituição, a apunhala, torna esse país não mais uma democracia, mas uma ditadura, com fantástica manipulação do povo por quem detém o comando autoimposto. Não vejo nenhuma distinção entre a posse de Maduro, maculador da Constituição venezuelana, e Hitler, em 1933, quando, com o mesmo poder de iludir o povo e perseguir e calar a oposição, deu início ao III Reich, tendo estupenda aprovação de uma sociedade seduzida pelas promessas messiânicas do ditador alemão.
Maduro não tem nem legitimidade nem legalidade no exercício do poder, mesmo com o apoio de uma Corte judiciária formada por amigos de Chávez, que, por força do artigo 263 da Lei Suprema, deveriam ser notáveis juristas, mas, pelo visto, conseguem esconder muito bem esses eventuais conhecimentos
Como Maduro encena uma ideologia que agrada ao governo brasileiro, tenho a certeza de que o Itamaraty se curvará a mais esta violação da democracia e da Constituição venezuelana e nada fará para punir esse país, como puniu o Paraguai.
* Ives Gandra da Silva Martins é professor emérito da Universidade Mackenzie, das escolas de Comando e Estado Maior do Exército (ECEME), Superior da Guerra (ESG) e da Magistratura do Tribunal Regional Federal – 1ª Região.
Fonte: O Estado de São Paulo, Caderno Opinião. 20 de março de 2013