MAIORIDADE PENAL E DISCERNIMENTO

 

Rogério Gandra Martins

 

Talvez um dos grandes cernes (quiçá o principal) dos debates envolvendo a redução da maioridade penal seja a resposta à indagação: Qual a idade na qual um indivíduo tem discernimento para destrinchar o que é permitido ou o que é proibido dentro do convívio social? Quando um ser toma realmente consciência do certo e do errado e tem capacidade e consciência em responder pelos seus atos?

As argumentações, discursos e fundamentos defendendo ou contrariando a redução da maioridade penal são acaloradas há décadas e continuarão sempre na sociedade atual, eivada que está pela dialética em todos os campos!

Penso que o ponto de partida para análise do tema deve necessariamente ser o Direito, uma vez que este é o que confere à sociedade o conjunto de normas visando que esta conviva dentro da maior harmonia possível.

E assim como o ponto de partida é o Direito, só se compreende a forma pela qual este confere as normas fundamentais para a sociedade analisando o que a Constituição de um Estado determina.

Nossa Constituição, datada de 1988, foi fruto de quase dois anos de intensos debates. Quando, enfim, promulgada, consagrou no artigo 14 que “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei (..)sendo o direito ao voto facultativo aos maiores de 16 anos e menores de 18”. A partir do marco de nosso Texto Supremo passou o maior de 16 anos a ser titular do direito de eleger, com base em seu discernimento, seus chefes do Poder Executivo Federal, Estadual e Municipal bem como aqueles que o representariam nos poderes legislativos das três esferas de governo.

O direito ao voto, base da maior conquista da sociedade contemporânea, qual seja, a democracia representativa, abraça o maior de 16 anos! Além de seu direito ao voto nossa atual legislação também estendeu sua participação política, podendo com base em seu discernimento expressar a manifestação de sua vontade em plebiscitos, referendos e até nas proposituras de iniciativa popular.

No fundo, entenderam os constituintes, já há mais de 20 anos, que o indivíduo de 16 anos havia ganho, com o desenvolver da sociedade, discernimento suficiente para atos jurídicos de tal envergadura.

Por outro prisma nossa Constituição estabeleceu em seu artigo 228 que “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.” A legislação especial a que faz menção o artigo veio a ser promulgada pouco após a Constituição: O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), que tratou no campo específico do menor  infrator, o estabelecimento de “medidas socioeducativas”  como formas de “penas” pelos atos praticados, bem como determinou em seu artigo 121 que: (a) “a internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento” (121, caput), (b)  “em nenhuma hipótese o período máximo de internação excederá a três anos” (121,§ 3º), (c) “atingido o limite estabelecido no parágrafo anterior, o adolescente deverá ser liberado, colocado em regime de semiliberdade ou de liberdade assistida.” (121, § 4º) e (d) “a liberação será compulsória aos vinte e um anos de idade” (121, § 5º).

A meu ver, comparando o tratamento conferido ao menor caso cometa algum ato contra a lei e a gama de direitos ao mesmo conferidos não só pela Constituição Federal mas pelos documentos jurídicos  mais recentes publicados no País, como é exemplo o Código Civil de 2002, pelo qual pode o mesmo dispor sobre seu patrimônio por testamento, ser mandatário  em atos jurídicos  (art. 666 CC), entre outras conquistas, noto uma verdadeira “esquizofrenia legislativa” confrontando seu tratamento constitucional, civil e de outros campos e seu tratamento penal. O que se constata na análise no que diz respeito ao menor é que para a esfera penal trata-se de um ser completamente desprovido de discernimento entre o “bem” e o “mal” e nas outras searas, alguém que tem a capacidade de intelecto político e de tantos outros atos na vida civil. Quando se verifica, apenas por lei, que pode por si só entender as complexidades de um contrato de compra e venda, mas não consegue distinguir ou “discernir plenamente” o que é um homicídio ou não, e caso o pratique será totalmente inimputável, conclui-se no mínimo que há uma profunda discrepância entre como os outros campos de direito cada vez mais veem o “menor” como apto a conhecer a realidade de direitos e deveres que existem na sociedade inserindo-o em tal contexto e a legislação penal, datada de 1940, que ainda o vê com ares de total falta de discernimento, tratando-o um menor de 18 anos como uma criança de 2!!!!

Ainda do ponto de vista jurídico, não compartilho do entendimento segundo o qual a inimputabilidade penal ao menor de 18 anos seja uma cláusula pétrea da Constituição e, portanto, imodificável. Neste sentido, acerca do tema, alinho-me à posição do Excelentíssimo Ministro Teory Zavascki que na sabatina perante o Senado Federal que o aprovou para a investidura no cargo de Ministro do STF, afirmou que não considerava a redução da maioridade penal uma cláusula pétrea, acreditando que as cláusula pétreas devem ser interpretadas de um modo restritivo pois tal postura confere maior adaptação da Constituição à dinâmica dos fatos sociais.

Constatada a dissonância entre o tratamento dado ao menor de 18 anos infrator e a atual realidade nacional percebe-se que o Direito deve ser revisto de forma urgente, caso contrário continuará letra morta no tocante ao tema da maioridade penal. O Direito nasceu para regular o comportamento do homem em sociedade, buscando sua maior harmonia possível. Se fica como mero espectador da realidade e com normas dissociadas dos fatos que nela buscou disciplinar não passa de uma mera “carta cor de rosa de boas intenções”.

Infelizmente o Brasil assiste à dura realidade de um sem número de “crimes” da mais alta brutalidade praticados por menores de idade o que cada vez mais tem resultado em vidas de inocentes ceifadas em troca de uma imputabilidade pois o “menor” não tem discernimento daquilo que faz. Desconhece o que é o “bem” e o “mal”!

Acredito também que o tema da redução da maioridade penal no Brasil quebrou as barreiras de questionamentos acerca de classes sociais. Barbáries são perpetradas hoje por jovens de todas as classes e a todos é necessária imperiosa repreensão estatal.

Reconheço que a diminuição da maioridade penal não resolverá em absoluto os problemas da criminalidade mas acredito piamente que uma vez aprovada, grande parte dos “menores sem discernimento” pararão para pensar antes de cometer as atrocidades que vem cometendo por todo o País. E evidentemente que não podemos ser ingênuos a ponto de imaginar que um menor que pratica um ilícito não sabe de todo o aparato de “benesses” que o espera. No máximo uma condução a um estabelecimento especial, com a aplicação de uma medida sócio educativa, prazo de permanência ínfimo bem como um período de prescrição da conduta mínimo. A ordem normativa penal está tão defasada da realidade que parece acreditar que o “menor infrator” não conhece todas as consequências legais de seus bárbaros atos perpetrados: homicídios, latrocínios, estupros, roubos, furtos e tantos outros perante cidadãos que diariamente trabalham, buscam o sustento de suas famílias e, de repente, são obrigados a assistir amordaçados, de camarote, alguma investida criminal destes jovens.

Se adotada a medida acredito que as técnicas mais do que praticadas pelo crime organizado de usar a infantaria dos “menores inimputáveis” na primeira linha do front de guerra, a fim de que os “de maior” sejam poupados para operações de grande vulto, seria razoavelmente diminuída. Evidentemente que o menor sabe que está “impune”. É o seu grande passe para ter literalmente “maior poder de fogo”. Se ganhar, ganhou. Se perder, logo ganha, pois aí está nossa legislação para colocá-lo em breve em liberdade. E o crime organizado, talvez a instituição mais bem estruturada em nosso país, tem plena consciência disto, de que as polícias civil e militar nada podem fazer, que das autoridades pouco será realizado pois vontade política não há.

O problema da criminalidade no País só será realmente analisado de forma séria e com resultados efetivos caso se pratiquem contundentes medidas interdisciplinares. Um elevadíssimo investimento em educação de altíssima qualidade, aparelhamento e condições efetivas para que as polícias possam de fato prestar segurança à população, uma verdadeira “revolução” em termos de políticas públicas a fim de retirar as populações menos abastadas dos níveis de miséria e não as algemas eleitorais de parcas “bolsas família” e tantas outras “bolsas” e programas pseudo-sociais que se distribuem como migalhas e jamais farão com que se alcance o desenvolvimento pleno e sustentável, aparelhamento seríssimo do exército, marinha e aeronáutica a fim de combater com resultados o tráfico de drogas e armas. Estas e tantas outras diretrizes  com planejamento de curto, médio e longo prazo. Eis o caminho que os nosso representantes eleitos deveriam tomar! Mas infelizmente uma política desta monta foge a qualquer ideário político governamental nos dias de hoje.

Creio que a redução da maioridade penal longe está de resolver em plenitude o complexo problema da criminalidade em nosso País. Mas acredito que trará resultados positivos.

Se 93% da população é favorável a esta redução acredito que o mínimo que a ela se pode ofertar é a possibilidade de exercer sua cidadania por um plebiscito.

Ou se toma uma atitude condizente com a realidade brasileira ou o que se poderá falar amanhã para o pai ou mãe de um filho, vítima inocente de um “homicídio” com requintes de crueldade? Para uma mãe, pai, marido de uma mulher vítima de um estupro provocado por um “de menor” de 17 anos? Será que aceitarão as palavras “tenham pena do garoto, não sabe ainda o que faz?”

 

Fonte: Folha de São Paulo, 13 de maio de 2013, p. A3

 

 ROGÉRIO LINDENMEYER VIDAL GANDRA DA SILVA MARTINS

43, advogado atuante em direito público, sócio da Advocacia Gandra Martins, Membro do Conselho Superior de Direito da FECOMERCIO-SP, Ex-Juiz do Tribunal de Impostos e Taxas e Ex-Conselheiro Seccional da OAB-SP

 

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