A CRISTANDADE

Continuando o texto anterior Daniel Rops explica, com uma linguagem de notável beleza, o que foi a Cristandade.

Grand texte: Daniel-Rops "L'Etat contre l'homme" - L'inactuelle
Daniel Rops

“O sentido de tudo isso é claro: se a sociedade estava infinitamente menos dividida do que está hoje, se a Europa cristã tinha o sentimento de constituir uma unidade, era porque uma ordem superior se impunha a todos os homens que a formavam. Unidade de fato, unidade de princípios, tudo andava ao mesmo passo. A causa era única: a influência profunda da fé cristã, a ação determinante da Igreja.

O cristianismo colhia o benefício dos esforços seis vezes seculares que os seus membros tinham realizado. A Igreja, durante o grande período de crise, tinha dirigido tão bem os destinos do mundo que ninguém pensava em recusar a sua autoridade. Fizera que se reconhecessem os seus preceitos como os da própria civilização e os seus homens eram eficazes em toda a parte. Surgia realmente como a mentora das nações e era ela que dava aos homens o sentido do seu destino comum. Ensinando-lhes que eram todos filhos de Deus, resgatados todos pelo sangue de Cristo, fazia-os ver que estavam unidos entre si, para além de quaisquer interesses antagônicos. Incutia-lhes, pois, uma solidariedade, que o bom poeta Ruteboeuf definiu tão bem em três versos simples e profundos:

Todos são um corpo em Jesus Cristo,

segundo vos mostro por escrito:

cada um é membro do outro.

Dava-lhes também o próprio sentido da vida, do esforço humano. Cada um sabia que, no lugar onde Deus o colocara na terra, tinha uma tarefa definida a realizar, em vista de um fim perfeitamente delineado. Cada um podia, pois, situar-se dentro de hierarquias estritas, e, trabalhando ao longo da sua existência, tinha a certeza de colaborar numa grande obra que o ultrapassava. Para os homens desta época, o universo era um vasto conjunto, previsto e ordenado por um Poder superior, em que nada, por conseguinte, podia ser absurdo ou inútil. Ora bem, para uma sociedade humana, é uma grande coisa saber para onde caminha.

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Afresco de Santa Maria Novella

São três séculos, portanto, em que a concepção agostiniana, tal como o gênio de Hipona a formulara, tentará concretizar-se em realidades. A “Cidade da Terra” encontra o seu sentido em função da “Cidade de Deus” que ela prepara. Como se vê no afresco de Santa Maria Novella, estão vinculadas uma à outra. Todos os batizados constituem desde já, na terra, uma entidade viva, fraternal, harmonizada pelos mesmos princípios, unida num mesmo esforço. Essa entidade recebe agora um nome: chama-se Cristandade.

No sentido preciso em que convém tomá-lo, o termo apareceu – e o conjunto de nações que abrange começou a fixar-se – em fins do século IX, quando um velho papa com um quê de gênio, João VIII[NOTA (14): Cfr. A Igreja dos tempos bárbaros, cap. VIII, par. Os supremos esforços de um velho Papa.], em face de perigos extremos, apelou para o sentimento que os cristãos podiam ter de uma comunidade de interesses. A palavra fora utilizada até então no seu sentido abstrato, para designar a doutrina cristã ou o fato de se ser cristão. Sobrepondo-lhe o sentido concreto de comunidade humana e de sociedade temporal, João VIII orientava-a para um novo futuro.

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O termo entra no uso corrente a partir do século XI. Fala-se agora da Cristandade, das ameaças que pesam sobre ela, dos objetivos que ela se propõe; fala-se também, no mesmo sentido, de “povo cristão”, de “comunidade cristã”, de “fraternidade cristã”. Cada um dos grandes Pontífices que utiliza a palavra enriquece-a de novos matizes. Com Gregório VII, surge a idéia de que a palavra corresponde a um território determinado, onde vivem os batizados, e de que, onde quer que esteja plantada uma cruz, existe a Cristandade. Urbano II, ao empreender a Cruzada, propõe-se selar a sua unidade, orientando-a toda para um fim admirável. Alexandre III introduz nela uma noção jurídica, segundo a qual os interesses da Cristandade exigem a harmonia entre os povos batizados. E por fim Inocêncio III leva a idéia da Cristandade à sua plenitude, procurando fazer dela uma verdadeira “organização das nações unidas” cristã, uma internacional da Cruz, em que os princípios evangélicos teriam força de lei e em que toda a autoridade dependeria do Papa, do Vigário de Cristo na terra.

O que é então a Cristandade no momento em que atinge o seu pleno desenvolvimento, isto é, no século XII? Dependendo da perspectiva com que se olhe (do céu ou da terra), podem-se dar duas definições, ambas solidárias. Em sentido lato, a Cristandade é o conjunto de homens regenerados por Cristo, que aspiram ao seu reino; em sentido estrito, é a sociedade dos cristãos enquanto vivem na terra e buscam fins temporais, partindo, porém, da base de que esses fins devem ser ultrapassados e realizados em Deus. A Cristandade é, portanto, um povo, a linhagem que nasceu de Cristo, que se nutre dEle e se dessedenta no seu sangue. É uma “nação”, uma comunidade que não está necessariamente ligada a um quadro geográfico e na qual todos os membros se sentem em sua própria casa. É uma sociedade, populus christianus, em que todas as desigualdades sociais e profissionais devem conciliar-se. É, enfim, uma pátria, por cujos interesses cada membro deve estar disposto a sacrificar a vida. As ordens religiosas militares serão os exércitos internacionais da pátria cristã, e, como disse com tanta justeza Étienne Gilson, a Palestina será a “Alsácia-Lorena” da Cristandade[NOTA (*): A Alsácia-Lorena foi, nos últimos séculos, um dos principais territórios disputados entre França e Alemanha (N. do T.).].

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Identifica-se com um território bem delimitado? Em princípio, não: os batizados sabem muito bem que a mensagem de Cristo se dirige a todos e que, virtualmente, a Cristandade é cósmica. Nem o Oriente, nem o Ocidente, nem a Europa podem apropriar-se dessa ideia. Mas, por causa da malícia dos homens, só uma parte da terra viu germinar a boa semente e por isso é essa parte – hic et nunc – que corresponde à área da Cristandade e é ela que deverá ser reforçada e defendida [NOTA (15): Encontra-se uma ideia similar na concepção que os comunistas sustentaram a propósito do papel da URSS. Também para eles a revolução marxista era internacional e devia acabar por englobar a terra inteira, mas, uma vez que só a URSS, hic et nunc, era a sua plena realização, devia ser ela o lugar de eleição e o modelo do marxismo realizado.]. Esta “terra de Cristandade” é definida pelo batismo; onde houver batizados, ali haverá Cristandade: as dissidências provocadas pelo cisma e pelas heresias não prevalecerão sobre este sentimento profundo. As afrontas que Bizâncio fará à Santa Sé não impedirão que os Papas queiram socorrer os gregos ameaçados pelos turcos. Mais ainda: os mais distantes grupos de cristãos heréticos, perdidos no coração da Ásia, serão vistos como irmãos pelos filhos da Cristandade, e São Luís enviará embaixadores aos cristãos mongóis nestorianos.

É, pois, a idéia da Cristandade que impõe aos batizados o sentido da sua profunda unidade. O sonho da unidade não deixara de povoar as consciências desde o fim do Império Romano. Carlos Magno e depois os Otões tinham-se apoiado nele para levarem a cabo os seus grandes desígnios. Mas a partir do século XI a perspectiva muda. O Sacro Império Romano-Germânico já não pode continuar a servir de marco para esta grande esperança; já não exerce a sua autoridade sobre regiões muito importantes do mundo cristão e, além disso, já não é possível alimentar a ilusão de que o Ocidente e o Oriente são duas partes de um mesmo todo. Uma vez que o Império já não realiza a unidade, é a Cristandade que o fará: a concepção de um mundo submetido à autoridade central do Imperador é substituída pela da comunidade dos povos cristãos.

E quem regerá essa comunidade? A Igreja. No entanto, a Igreja não é a Cristandade. Enquanto a palavra “Igreja” designa a Igreja docente, a Magistra, não se identifica com a Cristandade, porquanto a Cristandade é guiada, instruída e governada pela Igreja. Enquanto designa o conjunto dos batizados, também não se confunde com a Cristandade, porque os anseios dos homens enquanto batizados não são os mesmos que eles têm como indivíduos que vivem no plano temporal. A Igreja e a Cristandade são duas sociedades de cristãos, intimamente unidas, das quais uma tem por fim conduzir os seus membros para a vida eterna e a outra quer somente ajudá-los a cumprir o seu destino humano. Como membro da Igreja, o cristão submete-se à autoridade dos sacerdotes; como membro da Cristandade, submete-se à jurisdição dos chefes temporais.

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A distinção é clara e unanimemente aceita. Quando, por exemplo, se fala “do povo cristão, dos reis e do clero”, o que se faz é pôr de manifesto esta distinção. Mas não será possível confundir os termos? E, para alguns, não estará aí uma verdadeira tentação? Se a Cristandade não é a Igreja, quem é que, no entanto, lhe dá os princípios? A Igreja. Suprimir a Igreja é tornar a Cristandade inconcebível. E se o fim último da sociedade terrena é sobrenatural, poderá ela ser independente da autoridade que guarda o depósito desse tesouro sobrenatural? “A Cristandade não é a Igreja enquanto hierarquia, mas é constituída intrinsecamente pela Igreja”[NOTA (16): Jean Rupp.]. E é aqui que se encontra a origem de todas as dificuldades que esta época virá a sofrer.

A tentação será confundir a Cristandade com a Igreja. Ao invés de deixar que cada uma atue na sua ordem, tender-se-á a associá-las. Para que os princípios de Cristo sejam mais bem compreendidos e seguidos, para que a ordem cristã seja aceita pelos homens, os chefes da Igreja serão frequentemente levados a sair do plano espiritual para agir no temporal. A distinção fundamental entre a Cidade de Deus e a Cidade da Terra será mais ou menos esquecida; acreditar-se-á ou fingir-se-á acreditar, e em qualquer caso nutrir-se-á a esperança de que uma ordem temporal controlada pela Igreja venha a ser uma projeção na terra da ordem perfeita do céu. É o que Maritain denominou a “utopia teocrática”.

Utopia? Talvez. É verdade que este belo sonho nunca foi atingido e que o despertar foi cruel. O reino de Deus não é deste mundo e a ferida do pecado vicia as obras terrenas. Mas não é menos verdade que a idéia de uma Cristandade que possuísse o céu partindo desta terra levou gerações inteiras à exaltação e à superação de si mesmas, fez que os cristãos vivessem mais profundamente o cristianismo e suscitou obras grandiosas. Pode-se falar de sonho quando esse sonho atinge semelhantes resultados? E as grandes obras humanas não são, em última análise, utopias realizadas pela vontade, pelo sacrifício e pela fé? ”

FONTE: ROPS-Daniel. A Igreja das Catedrais e das Cruzadas, trad. de Emérico da Gama, São Paulo: Quadrante, 1993, p. 38-42.

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