A E. STURMM, ALFAIATE

Eça de Queiroz

Lisboa, Abril


Meu bom Sturmm.
– A sua sobrecasaca é perfeitamente insensata. Ali a tenho, arejando à janela, nas costas duma cadeira; e assenta tão bem nessas costas de pau como assentaria nas do Comandante das Guardas Municipais, nas do Patriarca, nas dum piloto da barra ou nas dum filósofo, se o houvesse nestes reinos. Quero, pois, severamente dizer que ela não possui individualidade.

Se V., bom Sturmm, fosse apenas um algibebe (1) embrulhando a multidão em pano Sedan para lhe tapar a nudez – eu não faria à sua obra esta crítica tão alta e exigente. Mas V. é alemão, e de Koenigsberg, cidade metafísica. A sua tesoura tem parentesco com a pena de Emanuel Kant, e legitimamente me surpreende que V. não a use com a mesma sagacidade psicológica.   

Não ignora V., decerto, que ao lado da Filosofia da História e de outras filosofias, há ainda mais uma, importante e vasta, que se chama a Filosofia do vestuário; e menos ignora, decerto, que aí se aprende, entre tanta coisa profunda esta, de superior profundidade: que o casaco está para o homem como a palavra está para a ideia.

Ora, para que serve a palavra, Sturmm? Para tornar a ideia perceptível e transmissível nas relações humanas – como o casaco serve para tornar o homem apresentável e viável através das ocupações sociais. Mas é a palavra empregada sempre em rigorosa concordância de valor com a ideia? Não, meu Sturmm.

Quando a ideia é chata ou trivial, alteia-se, revestindo-a de palavras gordas e aparatosas – como todas as que se usam em política.

Quando a ideia é grosseira ou bestial, embeleza-se e poetiza-se, recobrindo-a de palavras macias, afagantes, canoras (2) – como todas as que se usam em amor.

Por outro lado, escolhem-se palavras duma retumbância especial para reforçar a veemência da ideia – como nos rasgos a Mirabeau (3) – ou rebuscam-se as que pela estranheza plástica ajuntam uma sensação física à emoção intelectual – como nos versos de Baudelaire.

Temos pois que a palavra opera sobre a ideia, ou disfarçando-a ou acentuando-a. Vai-me V. seguindo, perspicaz Sturmm?

Tudo isto se aplica exatamente às conexões do casaco com o homem.

Para que talham os alfaiates ingleses certas sobrecasacas longas, retas, rígidas, com um debrum (4) de austeridade e ressudando (5) virtude por todas as costuras? Para esconder a velhacaria de quem as veste. Você encontra em Londres essas sobrecasacas, nos meetings religiosos, nas Sociedades promotoras da moralização dos pequenos Patagônios e nos romances de Dickens. E para que talham eles esses fraques audazes, bem acolchoados de ombros e cavados de cinta, dando relevo aos quadris – sede da força amorosa? Para acentuar os corpos robustos e voluptuosos a que se colam. Você vê desses fraque aos Lovelaces, aos caçadores de dotes e a toda a legião dos entretenus (6).

Disfarçando-o ou acentuando-o, o casaco deve ser a expressão visível do caráter ou do tipo que, cada um, pretende representar entre os seus concidadãos.

Quem lhe encomenda pois um casaco, digno Sturmm, encomenda-lhe na realidade um prospecto. E nem precisa o alfaiate que aprofundou a sua Arte, de receber a confissão do freguês. As ligeiras recomendações que escapam, inquietas e tímidas, na hora atribulada da “prova”, bastam para que ele compreenda o uso social a que o cliente destina a sua farpela (7)… Assim, se um cavalheiro de luvas pretas, com uma luneta de ouro entalada entre dois botões do colete, que move os passos com lentidão e reflexão, e, ao entrar, pousou sobre a mesa um número do Jornal do Economista, lhe diz, num tom de mansa reprovação ao provar o casaco: “Está curto e justo de cinta” – V. deve logo deduzir que ele deseja aquelas abas bem fornidas, flutuantes, que demonstram abundância de princípios, circunspecção, amor sólido da Ordem e conhecimento miúdo das Pautas da Alfândega… Vai-me V. penetrando, bom Sturmm?

Ora, que lhe murmurei eu, em mau alemão, ao provar a sobrecasaca infausta? Esta fugidia indicação: “Que cinja bem!” Isto bastava para V. entender que eu desejava, através dessa veste, mostrar-me a Lisboa, onde a ia usar, sinceramente como sou – reservado, cingido comigo mesmo, frio, cético e inacessível aos pedidos de meias libras… E, no entanto, que me manda V., Sturmm, num embrulho de papel pardo? V. manda-me a sobrecasaca que talha para toda a gente em Portugal, desgraçadamente: a sobrecasaca do Conselheiro!

Digo desgraçadamente – porque vestindo-nos todos pelo mesmo molde, V. leva-nos todos a ter o mesmo sentir e a ter o mesmo pensar. Nada influencia mais profundamente o sentir do homem do que a fatiota que o cobre. O mais ríspido profeta, se enverga uma casaca e ata ao pescoço um laço branco, tende logo a sentir os encantos dos decotes e da valsa; e o mais extraviado mundano, dentro duma robe-de-chambre, sente apetites de serão doméstico e de carinhos ao fogão.

Maior ainda se afirma a influência do vestuário sobre o pensar. Não é possível conceber um sistema filosófico com os pés entalados em escarpins(8) de baile, e um jaquetão de veludo preto forrado a cetim azul leva inevitavelmente a ideias conservadoras.

Você, pondo no dorso de toda a Sociedade essa casaca de Conselheiro, lisa, insípida, rotineira, pesabunda – está simplesmente criando um país de conselheiros!

Dentro dessa concepção banalizadora e achatante, o poeta perde a fantasia, o dandy perde a vivacidade, o militar perde a coragem, o jornalista perde a veia, o crítico perde a sagacidade, o padre perde a fé – e perdendo cada um o relevo e a saliência própria, fica tudo reduzido a esse cepo (9) moral que se chama o conselheiro! A sua tesoura está assim mesquinhamente aparando a originalidade do País! Você corta, em cada casaco, a mortalha dum temperamento. E se Camões ainda vivesse – e V. o vestisse – tínhamos em lugar dos Sonetos, artigos do Comércio do Porto.

Eça de Queiroz. Cartas Inéditas de Fradique Mendes. Lello & Irmão-Editores. Porto, 1951, p. 43-47.

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