ESQUERDA + FLUMINENSE: DELENDUS EST CORINTHIANS! *

 

Valter de Oliveira

Você acredita na teoria da conspiração? Provavelmente não. Eu também tenho minhas dúvidas. Um velho conhecido, o Praxedes, tentou provar-me que a teoria não só é a mais pura realidade mas ainda envolve atores que nunca imaginaríamos que estivessem aliados para praticar o mal. Estranho? Põe estranho nisso. Querem saber? Vou contar. Foi assim:

Estava tomando um cafezinho na padaria do Benjamim quando ele se aproximou e, sem muita cerimônia, sentou-se ao meu lado. Cá entre nós, não fiquei lá muito feliz. Sempre achei Praxedes um homem estranho. Mas naquele dia ele se superou. Contou-me coisas confusas, misteriosas, para finalmente afirmar:

– Pois é meu caro. Conseguimos. O Flu está mancomunado com a esquerda brasileira!

Quase engasguei. Com dificuldade ainda consegui dizer:

– O que você está falando? Ficou louco?

Praxedes parou um instante. Senti um frio na espinha. Seu olhar deixou-me petrificado. Então, dando uma mordida no croissant, digno de melhor sorte, ele pausadamente respondeu:

– Louco? Não, nem um pouco. Vou te contar quando o Flu passou para o nosso lado. Faz 40 anos.

Continuei mudo. Ele continuou:

– Tudo começou em 1968, na passeata dos Cem mil, lá no Rio.

 

– 68! Exclamei! Na passeata do povo contra a dita…

– Nela mesmo. Mas, já que percebo que você não crê muito no que estou te contando, vou te provar tudo lendo um texto de alguém bem imparcial. Um texto do torcedor mais fanático que o Flu já teve.

– O Nelson Rodrigues!

– O próprio. Ele estava lá. Ele viu tudo. E tirando uma folha do bolso começou a ler as palavras inspiradas do grande teatrólogo:

“(…) sábado último, lá fui eu remexer velhos jornais e revistas. Por coincidência, apanhei o número de Manchete referente à passeata dos Cem Mil.(…) e comecei a repassar as fotografias (…) O bom de Manchete é a impressão perfeita, irretocável. Tudo é espantosamente nítido”.

“E eu passei uma hora examinando o material fotográfico. Não sei se vocês se lembram. Mas escrevi na época, várias “Confissões” a respeito. Parecia-me, e ainda parece, que era um acontecimento inédito, nada intranscendente.  Até aquela data, só o futebol conseguiu juntar 50 mil brasileiros.”

-“Cada qual levava no seu bolso a sua ideologia, que era a mesma em todos os bolsos. Na época escrevi que não se encontrava, entre os Cem Mil, ou cinquenta, ou ate 25, nenhum preto. Eu estive lá espiando. Fui testemunha auditiva e ocular da marcha. Como sou uma “flor de obsessão”, não me saía da cabeça a ausência de negro. Se eu descobrisse um – não dois ou três – mas um, somente um, – já me daria por satisfeito.”

– “O fato é que, no dia seguinte, falando com o meu amigo Guilherme da Silveira Filho, fazia um escândalo amargo: “Nem um preto, Silveirinha! Nem um desdentado! , nem um torcedor do Flamengo!… “E o povo, onde está o povo?”. O povo era a ausência total. Não havia uma cara de povo, um paletó do povo, uma calça do povo, um sapato de povo.”.

“E súbito, baixou-me uma luz e vi tudo. Não havia um torcedor rubro-negro, ou um desdentado, porque aquilo era uma passeata das classes dominantes. A coisa era tão antipopular que não apareceu nem um batedor de carteira. Onde há povo, são obrigatórias uma série de figuras: – o vendedor de laranjas, de mate, de chicabon, de mariola.” (1)

Praxedes deu uma parada (ainda bem!) e aproveitei para perguntar:

– Ok. O Nelson diz que não tem pobre, não tem flamenguista, não tem mãe plebeia (2), que foi a passeata das classes dominantes… e?

-Deus do Céu!, exclamou ele. –Você não percebe? Quem são os jovens da classe dominante? Os torcedores do Flu, é claro. E o que gritavam eles? Brasil! Brasil!? Não. Como todos os jovens de esquerda da época, na Sorbonne, em Berkeley, na PUC, bradavam: Vietnã, Vietnã, enquanto olhavam embevecidos fotos de Che Guevara e de Ho Chi Min. Foi ali, meu caro, naquele dia, naquele solo carioca, que nasceu a união do fluminense com a esquerda.

O Praxedes parou um instante. Depois, com uma expressão de angústia e desalento, desabafou:

– É, conseguimos o apoio da classe dominante, do Flu, dos intelectuais, da mídia, dos padres de passeata mas o povo… o povo, o torcedor do Flamengo, do Corinthians, do Bahia, etc, etc… que decepção! Garotada do Flu cantando o Vandré e o povão no samba e no frevo!

Fez uma pausa. Depois continuou:

– E não mudou muito. 40 anos de esforço pra arrastar essa gente. E o resultado? O povão continua alienado. Alienado e ingrato. Olha só a eleição em São Paulo: Corinthianada ganha bolsa família, CEU pros miudinho, camiseta bom-bril do PT, visita de um presidente da hora como o Lula, beijinhos carinhosos da Marta. E o que fizeram? Votaram no Kassab! (3)

Quase que fiquei comovido. A razão pôs meus sentimentos em ordem. E, apesar de cansado da lógica estranha do Praxedes, resolvi tirar uma dúvida.

– Mas por que o ódio contra o Corinthians? Porque destruí-lo?

Praxedes foi incisivo: -Porque a fiel não só não seguiu a esquerda mas ainda mandou 70 mil corinthianos invadirem o Maracanã em 74 humilhando os boys e os cartolas do Flu. Foi demais. Imperdoável. Resolvemos nos vingar.

– É mesmo, disse eu. Quero saber como.

– Muito simples. Apelamos para D. Helder. Ele entrou em contato com os clérigos progressistas europeus e resolveram o problema. Acabaram com o padroeiro do timão.

-Essa não! disse eu, de onde tirou essa?

-Não lê jornal não, meu amigo? A ditadura “cassava” a companheirada. Os teólogos “cassaram” S. Jorge! E com toda a razão. O homem é militar e também protetor do imperialismo inglês. Pior: não encontraram dele nem RG nem CPF. Como ia ser controlado pelo Estado?

Depois desta levantei-me. Não sem antes, dar um sorriso e dizer:

– Praxedes, diga para os seus amigos, que não damos a mínima. Só prova que eles não têm a mínima visão sobrenatural…

PS: A um grande amigo:
Bira: Não liga não. Quando estava saindo do Benjamim senti o cheiro de enxofre. Sabe, no fundo, o que o Praxedes queria era criar antagonismo, luta de classes. Coisa de marxista. Queria que odiássemos a aristocracia fluminense. Esqueceram que somos descendentes de ingleses, que temos a sabedoria grega, a vivacidade italiana, o coração brasileiro. E amamos todo mundo. Nós sabemos o que é a verdadeira pluralidade.
Ah! E quando o timão bate em vocês é com carinho. Só quando vocês merecem..

Notas:

* “É preciso destruir o Corinthians”
1. Nelson Rodrigues. O Reacionário. Memórias e Confissões. São Paulo, Companhia das Letras, 1995 – artigo: Um pesadelo com cem mil defuntos. Págs 27-30.
2. Não tinha torcedor do Vasco porque o Eurico não deixou. Do Botafogo não adiantaria muito. Seria só uma estrela solitária…
3. Texto originalmente escrito em 2008.
 
Fonte:
http://www.olivereduc.blogspot.com.br/search?updated-min=2008-11-01T00:00:00-02:00&updated-max=2008-12-01T00:00:00-02:00&max-results=10

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