IMPERDOÁVEL: VIGIAR OS PENSAMENTOS DO CORAÇÃO

Pablo Gonzáles Blasco

Tropecei com o filme, ou melhor, com as palavras chave. Sandra Bullock, vinte anos de prisão por assassinato, criminosa rejeitada pela sociedade. Não precisou mais: a faísca saltou, como arco voltaico, e lá estava eu na frente das imagens que, lentas, sem pressa, se sucediam. Pressa para o que? Uma vida partida, vinte anos perdidos, e a reputação no lodo, sem remédio. E tudo concentrado na face desfeita, no olhar triste e conformado, no andar trôpego de uma Sandra Bullock em plenitude. Enchendo a tela, as nossas cabeças, apelando para a consciência. Uma tragédia sem volta, um final conhecido – lembrei de Antígona, de Desdêmona, de Lucia de Lammermoor.(1)

Não há o que descrever, nem é possível aventurar-se com o argumento que, de outra parte, é simples, duro, insolúvel. É preciso assistir com atenção, com respeito, e apalpar o sofrimento que a atriz -insisto, em estado de graça- o torna próximo, verossímil, doloroso. As conclusões e os aprendizados imensos virão em decorrência. E nos cutucarão, porque o filme é isso: uma chacoalhada na consciência do espectador.

Uma reflexão: temos a obrigação séria de vigiar nossos juízos e palavras

Recentemente comentamos na nossa tertúlia literária um livro que adverte do perigo da palavra ociosa, do julgamento frívolo, de manchar a fama do próximo: Reparação . Todos saímos da nossa reunião de pensadores com a ideia clara de que é preciso vigiar -em marcação cerrada- as palavras, o que falamos dos outros, porque o estrago dificilmente tem conserto, como mostra a obra de Mc Ewan.  

O filme de Bullock vai ainda mais fundo, e complementa essa reflexão tão necessária. Hoje e sempre. Não basta vigiar as palavras, se damos rédeas  soltas aos pensamentos. Não é suficiente não falar mal dos outros -o que implica em juízo realizado e definido contra a pessoa em questão- se internamente nos permitimos pensar, julgar, ponderar as atitudes alheias. “Mas eu não digo nada, somente penso”. Um sofisma equivalente aquela expressão estúpida de “perdoo, mas não esqueço”. Na verdade, nem perdoo, nem esqueço, e continuo julgando, e sentindo-me no direito de fazê-lo. “Afinal, eu sei como são as coisas, apenas junto fatos, e as consequências são essas mesmas. Mas vigio minhas palavras, fico quieto”. Ingênua atitude, equivalente a colocar uma rolha no vulcão e enganar-se pensando que a lava fervilhante vai se acalmar.

“A boca fala do que o coração está cheio”

 O homem bom tira coisas boas do bom tesouro que está em seu coração, e o homem mau tira coisas más do mal que está em seu coração, porque a sua boca fala do que está cheio o coração. Lucas 6, 45.

Diz a Bíblia que “abundantia cordis os loquitur”, quer dizer, a boca fala do que levamos no coração, do que lá vai se alimentando.  Esta é a pergunta chave: o que eu levo no coração? O que realmente penso dos outros? Quais são as categorias que utilizo para julgar? Isso, se não houver a coragem de ir mais fundo: afinal, quem sou eu para julgar? O que eu conheço, de verdade, das razoes, dos motivos alheios? Posso aplicar, confortavelmente, as minhas categorias para medir as ações do próximo? Na teoria, pensamos que nunca fazemos isso, mas é justamente o contrário: o fazemos o tempo todo. Somos fiéis discípulos de Kant, que recomendava aplicar as categorias internas, a priori, para melhor conhecer a realidade… que tinha de se encaixar nessas categorias, para trabalharmos com ela

A grande responsabilidade não é do que falamos ou fazemos, mas a contabilidade começa muito antes: o que, de fato, nos permitimos pensar. Evidentemente, é necessária uma sinceridade imensa para  reconhecer essa responsabilidade e, também, saber limpar as lentes através das quais enxergamos a conduta alheia. O tema não é simples, porque a condição humana é complexa e contraditória.

Vale invocar outra surpresa “bíblica” com a qual me deparei, sem procurá-la, nos dias em que tinha assistido o filme, e continuava dando-lhe voltas. Numa passagem , quando se fala de que “é do coração, de onde procedem os maus pensamentos, os egoísmos, adultérios, e invejas”, tive a curiosidade de ver a tradução latina desses termos na Vulgata.  Minha surpresa foi imensa ao ver que “inveja” é traduzida por oculos malos. Busquei outra versão do texto, e o resultado foi o mesmo. Isso é o que faz a inveja –oculos malos:  colocar uma lente que deforma a realidade, que filtra a imagem alheia de acordo com os nossos interesses mesquinhos. A inveja é, por assim dizer, uma categoria que temos à mão, uma lupa de bolso para dar uma olhada rápida no agir alheio e tirar nossas conclusões. Mesmo que, depois, guardemos no bolso, a lupa e o julgamento. Mas não ficarão lá por muito tempo.

Em Imperdoável, a inveja não é manifesta, porque o julgamento estabelecido preside toda a fita. A protagonista não facilita as coisas -curioso aprendizado, de alguém que não busca outros culpados, ou desculpas atenuantes variadas. Não é pouca coisa, principalmente  nos dias atuais, onde a caça às bruxas se traduz em  encontrar, rapidamente, à distância de um click, os culpados pelos nossos problemas.

E, talvez tenha sido essa atitude da condenada –  a de sofrer passivamente, com serenidade –  o que acabou de me conquistar de vez. Estamos tão saturados de reclamações de todos e de todo tipo que, quando alguém simplesmente enfrenta os problemas, sem vomitar queixas, ficamos muito surpresos. Até nos dá inveja. A chamada “inveja boa, que os clássicos chamam de emulação. “Ao mau tempo, boa cara”, diz o ditado espanhol, em livre tradução. Mas a boa cara, não é indiferença nem apatia. É o reflexo exterior que traduz a integridade de quem sabe o que quer, de quem tem claro o que é prioridade e aquilo que não é negociável. Nunca.

Relendo um antigo documento do Papa S. João Paulo II sobre a dignidade humana –Veritatis Splendor– tropecei com uma frase que Karol Wojtyla (que além de Papa, era um magnífico pensador, um antropólogo de mão cheia) incluiu citando o poeta latino Juvenal: “Considera (que) o maior dos crimes (é) preferir a sobrevivência à honra e, por amor da vida física, perder as razões de viver”. Impactante e definitivo. Essa é a medida da integridade. Quem negocia -valores, honra, e até a vida- acaba ficando na indigência, faltam-lhe os motivos para continuar vivendo.

Esses são temas latentes em Imperdoável, mas não é o caso de ventilá-los aqui, pois é preciso manter o clima, preservar o argumento. Somente assistindo, refletindo, pensando. E abrir o coração para enxergar o que pensamos de verdade e quais são as negociações em que nos envolvemos e tornam nossa vida insípida e medíocre. Imperdoável, em versão, Bullock: um filme superior!

Notas:

  1. Antígona: célebre tragédia grega escrita por Sófocles.  https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/a-tragedia-na-peca-teatral-antigona-sofocles.htm
  2. Lucia di Lammermoor é um drama tragico ( ópera trágica) em três atos de Gaetano Donizetti . Salvadore Cammarano escreveu o libreto em italiano vagamente baseado no romance histórico de 1819 deSir Walter Scott , A Noiva de Lammermoor 

Pablo Gonzáles Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Educação Médica e Humanismo, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM).

The Unforgivable.

Dir: Nora Fingscheidt. 

Sandra Bullock; Viola Davis;Vincent D’Onofrio.

USA 2021. 112 min

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