O FIDALGO DE LA MANCHA

     Mateus Leme

“Dom Quixote” é com certeza o maior clássico da literatura espanhola, e um dos mais importantes de toda a literatura universal. Sem dúvida, um livro indispensável!

Há alguns livros dos quais nos aproximamos com verdadeira veneração. Dom Quixote é um deles. Imaginar, por exemplo, uma edição em brochura (deve haver, nada contra), parece quase um desrespeito a esta grande obra, que recentemente completou 400 anos. De fato, é sem dúvida um dos maiores clássicos da humanidade; obedece inclusive à definição feita pelos cínicos (da qual não compartilho), de que “clássico” é um livro que todo mundo cita sem ter lido. Na verdade, uma prova indireta da grandeza do Quixote  é que todo mundo, mesmo quem lê muito pouco, sabe de cor o nome de seus personagens principais e, mais ainda, associa-os exatamente a suas respectivas personalidades.

É um livro imponente, a começar pelo tamanho: as menores edições têm mais de mil páginas. Pelo mesmo motivo, muitos leitores tímidos ficam amedrontados e não se atrevem nem a começar. Grande erro: o princípio que rege o bom livro deveria ser o mesmo do bom sorvete: “quanto maior, melhor”. Alguns, por outro lado, até tentam começar, mas caem vítimas do grande mal das muitas edições comemorativas: os intermináveis e enfadonhos prefácios e estudos sobre a obra, que se colocam entre você e a história de fato. Minha dica, portanto: escolha uma boa edição (há algumas em vários volumes, com ilustrações de Gustave Doré, por exemplo, ou outras em apenas um ou dois volumes), com abundantes notas de rodapé, mas pule os prólogos. Pule tudo, sem dó, inclusive os do próprio Cervantes (dependendo da edição, serão umas 100 páginas, sem brincadeira). Vá direto ao “Capítulo Primeiro”, e mergulhe na maravilha do primeiro parágrafo: “Em um lugar da Mancha, de cujo nome não posso lembrar-me, há não muito tempo vivia um fidalgo dos de lança encostada, escudo antigo, cavalo fraco e galgo corredor. Um cozido de algo que era mais vaca que carneiro, sobras na maior parte das noites, ovos com toucinho aos sábados, lentilhas às sextas e algum pombinho como extra aos domingos consumiam três quartos de sua renda”. É ouro puro.

Para grande e feliz espanto do leitor, o livro, apesar do tamanho, não é de leitura difícil (exceto pelos termos utilizados, por isso, dependendo da tradução, é essencial um bom rodapé). A personalidade dos personagens fica muito bem caracterizada: Dom Quixote, fanático por histórias de cavalaria, e que deseja reviver em sua loucura o ideal de lutar pelo bem e combater o mal. Sancho Pança, o escudeiro, que em sua simplicidade é arrastado de um lado a outro pelo cavaleiro, mas que ao mesmo tempo mantém-se inabalável dentro da realidade mais prosaica, exatamente como se entre ambos d. Quixote fosse a cabeça e Sancho o corpo. E na verdade é assim mesmo: nenhum de nós é ideal puro, e nem pura necessidade animal.

As aventuras de d. Quixote terminam muitas vezes de forma cômica, graças a sua incontrolável tendência de tratar todas as situações como romances de cavalaria. Assim, confunde estalajadeiros com donos de castelos, cuidadoras de porcas com princesas, moinhos com gigantes, etc. Mais de uma vez, tenta libertar presos, e desastradamente acaba levando grandes surras. No entanto, mesmo em sua loucura, o cavaleiro demonstra em diversas ocasiões uma profunda sabedoria. Sancho, também, com frequência brinda o leitor com verdadeiras pérolas de sabedoria popular, como “Mais vale um ‘Toma’ que dois ‘Te darei’”.

O erro de d. Quixote não está em seu ideal de defender o bem e enfrentar o mal, mas sim no lugar onde os enxerga. É, por isso, um verdadeiro herói, mas no mundo errado. A reflexão que deveria surgir é: e nós, que estamos, por assim dizer, “no mundo certo”, e conseguimos ver o bem e o mal em seus lugares reais, reagimos com a mesma intensidade? D. Quixote tinha uma consciência limpa em um mundo de fantasia; será que a nossa, no mundo real, não precisaria também de uma limpeza?

Fonte: http://www.semprefamilia.com.br/bibliotecabasica/o-fidalgo-de-la-mancha/

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