(Artigo na ótica do PCO – Partido da Causa Operária)
Os identitários querem impedir fantasias sob os “argumentos” de lugar de fala e apropriação cultural, esquecendo-se que o próprio Carnaval é uma “apropriação cultural”
Eduardo Vasco
“O Carnaval é a festa popular por excelência, o único momento no ano em que o povo pode se libertar minimamente das amarras da opressão feroz a qual é submetido pelo sistema de dominação vigente, na nossa época, o capitalismo.
É a subversão da ordem, a emancipação temporária do corpo e da mente. É quando aqueles que sempre viveram na escravidão experimentam a sensação de liberdade. Por isso sempre foi visto com preocupação pelos que detêm o poder”.
Depois de historiar as origens do carnaval, passando sobre o “controle da ditadura sobre o carnaval”, Eduardo Vasco passa a tratar especificamente da questão identitária. Curiosamente, na visão do autor, o identitarismo é tido como reacionário e fascista…
Continuemos o artigo.
“Identitarismo, lugar de fala e apropriação cultural
“Os identitários – conjunto de elementos pequeno-burgueses que expressam uma ideologia reacionária supostamente esquerdista patrocinada pela burguesia – aproveitam o Carnaval para promoverem sua lógica antipopular em nome do politicamente correto.
Este ano, ganhou repercussão a fantasia da atriz Alessandra Negrini, vestida de índia com a intenção de denunciar os crimes do governo Bolsonaro contra as comunidades indígenas. Uma manifestação perfeitamente legítima e progressista. Entretanto, os grupos identitários perverteram totalmente o debate a respeito desse fato, escondendo a denúncia à destruição das terras indígenas para acusar a atriz de se apropriar indevidamente da cultura dos índios, como se ela estivesse debochando de suas tradições.
Assim, esses grupos, na prática, saíram em defesa das atrocidades cometidas pelo governo Bolsonaro e buscaram censurar as denúncias contra elas. Tudo sob o disfarce de um dos aspectos mais reacionários da ideologia identitária, o chamado “lugar de fala”, no qual uma pessoa não poderia expressar sua opinião sobre determinado tema que atinge um grupo social específico se ela não se enquadrar perfeitamente nesse grupo. Como Alessandra não é indígena, ela não teria o direito de falar em nome dos indígenas – mesmo que seja mais do que óbvio que a esmagadora maioria dos indígenas apoie o que ela fez, como foi publicamente exposto pela Associação dos Povos Indígenas do Brasil.
Os identitários dizem que índio, cigano, mulher, negro, LGBT, enfermeira etc. não são fantasias. Isso, segundo eles, porque pessoas que não se encaixam em cada um desses segmentos não têm o direito de representá-los, porque essa representação seria, inevitavelmente, pejorativa e negativa. Nessa lógica, não se pode vestir fantasias de vaqueiro, operário, urso panda… Imagine só, você debochando de um animalzinho em extinção com sua fantasia de panda no Carnaval!
Diretamente ligado ao “lugar de fala” está outro conceito ultrarreacionário apregoado pelos identitários: a apropriação cultural. Enquanto o lugar de fala busca a censura à liberdade de expressão, o conceito de apropriação cultural diz que a utilização de certos aspectos da cultura de um povo por outro povo não passa de um roubo – como se fosse possível arrancar a cultura para si e tirar do outro.
Deste modo, a utilização de um cocar, de uma peruca blackpower ou de roupas usadas por religiões de matriz africana seria algo desrespeitoso, porque os descontextualizaria, retirando seu significado original para ressignificá-los de uma maneira totalmente diferente. Mais uma vez, estaria manchando a tradição desses povos.
A apropriação cultural, entretanto, é algo que sempre ocorreu na história da humanidade e é graças a ela que a sociedade evolui. Ela é agente de progresso. As invenções de um povo não poderiam ser importadas por outros povos, segundo os identitários. Sendo assim, os fogos de artifício, até hoje, seriam propriedade exclusiva dos chineses e os conhecimentos astronômicos dos maias deveriam ter sido enterrados junto com eles quando chegaram os espanhóis para os dizimar.
Para trazermos a questão ao tema abordado no início deste artigo: se o Carnaval tem suas origens nas tradições religiosas greco-romanas, obviamente ele é uma cultura apropriada por outras culturas ao redor do globo ao longo da história. Na lógica identitária, isso é um crime. Não poderíamos utilizar o Carnaval. Logo, ele não deveria existir no Brasil. Deveria ser algo comemorado somente pelos que acreditam em Dioniso/Baco – mas, provavelmente, não existe mais ninguém que acredite religiosamente na mitologia greco-romana, portanto o Carnaval deveria ter sido extinto.
No Brasil, os negros se apropriaram do Carnaval. E mesclaram as diversas tradições para transformá-lo em uma das mais poderosas expressões populares do País. Aqui, o Carnaval é de origem negra e pobre. Ora, para os identitários, então, os brancos e a classe média nunca poderiam participar dessa festa. Curiosamente, boa parte desses identitários é branca e a maioria pertence à pequena-burguesia…
O identitarismo estende o tapete para o fascismo
Como destacado no artigo “Polêmica das fantasias: a esquerda identitária a serviço da direita”, publicado pelo Diário Causa Operária, a direita abraçou as ideias identitárias neste Carnaval. A polêmica sobre Alessandra Negrini foi alimentada pela Folha de S. Paulo, enquanto que os órgãos governamentais dos estados do Ceará (Defensoria Pública) e de Minas Gerais (Prefeitura de Belo Horizonte) divulgaram instruções sobre fantasias e músicas “politicamente incorretas”, buscando censurar a livre expressão popular. O exemplo mais nítido foi a detenção de um jovem pela Polícia Militar, em Salvador, por usar o símbolo da maconha incorporado ao escudo da PM em sua fantasia.
Em um esboço de debate, um identitário me disse: “Você está proibido, e eu também, de falar pelas mulheres. Ou pelos indígenas. Ou pelos negros. Ou pelo povo LGBT. Faz parte da política de direita tomar o lugar de fala do outro, tornando-o invisível. De modo que eles determinam a política para todos os grupos.”
Ora, essa é a demonstração clara do pensamento reacionário identitarista. Proibir, sob a desculpa de que quem “toma o lugar de fala do outro” o torna invisível. O fato de eu dar a minha opinião sobre o movimento feminino ou o movimento negro não tem absolutamente nada a ver com tentar invisibilizar as mulheres ou os negros. Pelo contrário, trata-se de um apoio à luta das mulheres e dos negros. Se me dizem os identitários que eu devo me calar porque eles não precisam de meu apoio, isso sim é censura, é tentar me tornar invisível. E, como disse o identitário, a tentativa de tornar um indivíduo invisível faz parte da política da direita. São os identitários que buscam determinar a política para todos os grupos, em nome de sua ideologia confusionista e reacionária.
Os identitários querem proibir as pessoas de falarem. Ora, a ditadura militar dos generais fascistas tinha essa mesma política. Tanto é que um dos lemas da juventude rebelde da época era “É proibido proibir”.
E hoje, quando o povo brasileiro vive um cenário semelhante, sob um governo que acelera os passos para implantar uma ditadura fascista, cassar todos os tipos de direitos, proibir a livre expressão, reprimir qualquer manifestação popular e de opinião, a ideologia identitária ganha força dentro dos ambientes pequeno-burgueses, em particular os pseudoesquerdistas, pregando a proibição de que as pessoas falem e expressem sua opinião das mais variadas maneiras. Censurar o Carnaval é uma demonstração perigosa dessa tendência, uma vez que, como dito no começo deste artigo, ele é a festa do povo, em que a população se liberta, mesmo que parcialmente, de toda a opressão que sofre.
Quando apresentei o artigo do DCO sobre a polêmica das fantasias e o identitarismo, o nosso identitário fez aquele tipo de crítica costumaz de um pequeno-burguês moralista, sem nenhum argumento: “O que temos é um texto reaça, conservador, mofado, defensor das tradições, incluindo aquelas que incomodam os outros.” Ainda afirmou que era “um texto medíocre, burro”.
Talvez o nosso “crítico” tenha lugar de fala para chamar o texto de burro”.