NIVALDO CORDEIRO
15/11/2010
Os tempos da guilhotina foram o prelúdio do que viria no século XX. O tempo presidido pelo medo da morte será o tempo dos genocídios.
“A rejeição contemporânea do direito natural conduz ao niilismo – mais, é idêntica ao niilismo“.
Leo Strauss
Foi preciso que viessem as grandes catástrofes políticas do século XX para a humanidade se debruçar sobre a gênese do totalitarismo. Vimos em artigo anterior que a construção do totalitarismo tem raízes na Antiguidade e se confunde com o surgimento dos sofistas, na Grécia clássica. Vimos também que finca raízes na decadência da filosofia cristã, sobretudo com o ramo nominalista. No século XX os principais filósofos tentaram explicar o fenômeno. Como Hitler foi possível? E as Grandes Guerras?
Entender suas respostas pode nos dar a chave para entender o que se passa no mundo de hoje e no Brasil. Estamos vendo a crise econômica se desenrolar, a decadência do dólar e da economia norte-americana, a emergência da China como centro de poder e, no Brasil, o aprofundamento da experiência socialista do PT. A edição do III Plano Nacional dos Direito Humanos e os perigos que emergem da ameaça totalitária no Brasil exigem uma reflexão sobre o que está acontecendo. Vimos que compreender a declaração sistemática de direitos humanos como tem sido feito em todo o mundo, pelos Estados nacionais e pelas instâncias coletivas, como a ONU e a OEA, é a chave de todo o processo.
À primeira vista direitos humanos parecem uma obviedade e não precisaria haver diploma legal algum específico para a sua vigência, uma vez que estes direitos estão disseminados em toda ordem jurídica. Ocorre que aquilo que se proclama como “direito humano” nada tem a ver com sua definição intuitiva, mas sim, com uma nova filosofia política que emergiu na Europa a partir do século XVI. Essa nova filosofia é materialista e atéia e emergiu dos tempos do Renascimento precisamente para enfrentar a tradição greco-judaico-cristã. Esta dizia que há uma metafísica, uma teleologia na natureza, que Deus é o criador e que o direito e a moral foram instituídos por algo além do homem, Deus ele mesmo, cabendo à humanidade descobrir a lei natural e às autoridades estatais transformá-la no direito positivo.
Essa visão de mundo baseava-se no direito natural, proposta que nasceu com Platão e foi aprofundada por Aristóteles, autores que moldaram o direito romano e o tempo medieval. A cristandade abraçou sem reservas a idéia de direito natural, que praticamente foi seguida no Ocidente até o Renascimento. Outra idéia substantiva baseada nos filósofos clássicos é a organização social em termos aristocráticos, havendo uma hierarquia natural que começa no princípio de que Deus é a medida de todas as coisas e o homem está a ele subordinado. Da mesma forma, o estudo da ciência política iniciava-se na observação das sociedades, dos regimes políticos. O homem, no dizer de Aristóteles, era, por natureza, social. Esse conceito de regimes políticos foi substituído por Hobbes, o filósofo maior da modernidade em matéria de política, pelo de soberania, ou soberania popular. Hobbes fará coro com Maquiavel e descartará as virtudes da honra e da justiça como o parâmetro norteador da ação do governante, pondo em seu lugar a negação da virtude dada pelo medo da morte.
A virtude do governante passou a ser tão somente a capacidade de conquistar e manter o poder, valendo para isso todos os meios disponíveis, sem nenhuma restrição moral.
Esse medo da morte irá fundar a idéia do contrato social, estranha a toda tradição até então, idéia que havia morrido com os sofistas, desacreditados que foram pela filosofia clássica. A nobreza governante nunca se moveu por medo de morrer, ao contrário, era próprio do nobre enfrentar a morte certa se isso fosse necessário para o bem estar da coletividade. Nobreza equivalia a sacrifícios. Com a dupla Maquiavel/Hobbes a ciência política abre as portas aos aventureiros, os novos príncipes, os revolucionários que irão destronar a realeza e, mais que ela, implantar as repúblicas “populares” e “democráticas” como as conhecemos. Os tempos da guilhotina foram o prelúdio do que viria no século XX. O tempo presidido pelo medo da morte será o tempo dos genocídios.
O medo de morrer instituirá, para Hobbes, a proclamação do direito à vida, a obrigação fundamental do governante que supostamente recebe o poder delegado pelo contrato social com o povo. A antropologia fundadora dessa visão é aquela proposta pelos sofistas, de que o homem natural vive sozinho e que a cidade só será fundada depois de instituído o contrato social. Em sua obra, Michel Villey aponta que isso é um paralogismo necessário para se construir a falsa ciência política praticada nos tempos modernos. Do direito à vida serão derivados todos os demais direitos humanos, pois afinal todos eles supostamente contribuiriam para que o primeiro direito fundamental pudesse vigorar.
Não teria havido a tragédia do século XX sem que essa loucura toda tivesse sido imaginada como substituta do verdadeiro saber. Hobbes é o fundador do historicismo, ele que traduziu a obra de Tucídides e o colocou no lugar de pensador maior, em substituição a Aristóteles. De Hobbes duas tradições foram formadas, uma da linhagem de Locke, que moldou as instituições da democracia representativa e outra, da linhagem de Rousseau e Hegel (e Marx) que desaguou no jacobinismo esquerdista. O liberalismo clássico tentou circunscrever os direitos humanos a três fundamentais, à vida, à propriedade e à liberdade. Já o jacobinismo fará a multiplicação desses direitos e derrotará politicamente seu adversário liberal. O século XX assiste à completa derrota política do liberalismo clássico e vê emergir, primeiro, os Estados totalitários e, logo a seguir, o agigantado Estado de bem estar social, ele mesmo uma mera variação do totalitarismo.
O Estado de bem estar social derroga a idéia de direito à propriedade, pela via da elevação sistemática da tributação. E derroga também a liberdade, na media em que regula todos os recantos da vida privada. A diferença essencial entre o totalitarismo da primeira metade do século XX e o Estado agigantado de bem estar social é que este não usa de violência que não aquela prevista em lei, porém até mesmo o ideal racista é resgatado, como vimos nas ações afirmativas em todo o mundo. A produção de leis em escala industrial, por seu turno, permitirá que o Estado pratique todo tipo de violência contra seus súditos, na medida em que tudo passa a ser criminalizado e para todo crime tipificado há uma polícia. Por conta disso, a população encarcerada tem crescido exponencialmente e nos EUA já temos mais de 2% da população masculina adulta prisioneira.
Quais as explicações teóricas para esse estado de coisas, para o totalitarismo do século XX? A primeira obra que procurou dar uma resposta veio da vertente liberal, em livro publicado por Karl Popper, A SOCIEDADE ABERTA E SEUS INIMIGOS. Diagnosticando corretamente que a raiz do problema estava no historicismo, Popper erroneamente vai apontar Platão como o filósofo que deu origem ao totalitarismo. Ora, Platão é o fundador da tradição do direito natural e o descobridor da idéia de lei natural, que encontrará paralelo na verdade revelada da tradição judaico-cristã. Talvez Popper não tenha compreendido suficientemente o platonismo e não tivesse pesquisado com rigor a profunda mudança ocorrida na filosofia política ao tempo do Renascimento.
Essa visão popperiana foi popularizada e contribuiu para que a verdadeira causa do totalitarismo, a saber, as idéias sofistas e sobretudo as de Epicuro, fossem ocultadas do grande público. Quem corrigirá o erro inicialmente é a dupla de filósofos germânicos radicados nos Estados Unidos, Leo Strauss e Eric Voegilin, posteriormente complementados pela notável obra de Michel Villey. Strauss, no magnífico livro DIREITO NATURAL E HISTÓRIA, mostrará em páginas memoráveis que está em Epicuro a gênese totalitária, com seu ateísmo, seu materialismo, seu hedonismo, os elementos que de fato contribuíram para a construção de um sistema de poder em que o homem é a medida de todas as coisas. Epicuro é o pai do niilismo político.
Agora os tempos exigem a nova ciência da política, aquela fundada pelos três últimos autores Strauss, Villey e Voegelin. A proliferação dos direitos humanos, a ameaça representada pela unidade das soberanias, o império mundial que se forma, a hipertrofia estatal que dá todo o poder à burocracia para dispor da vida de todas as pessoas, tudo isso é uma ameça sem precedentes para a raça humana. O abandono do padrão invariável de justiça fundado na transcendência, pondo-se no seu lugar o positivismo jurídico mais primário, que unicamente representa a vontade do governante, é o meio pelo qual essa ameaça tem afetado o dia a dia de toda gente.
O único antídoto para a loucura que está posta ameaçando a vida, a liberdade, a propriedade e a sanidade da humanidade é a restauração do direito natural clássico, com tudo que implica, inclusive com os elementos metafísicos inerentes.