Sonia Rosalia Refosco de Oliveira
Existe um velho ditado que diz: “O que os olhos não veem o coração não sente”. Será que podemos afirmar que se trata de uma verdade incondicional? Ou poderíamos citar outro provérbio que eu ouvia de minha mãe: “Por fora bela viola, por dentro, pão bolorento”. Vamos aos fatos, porque contra fatos não há argumentos.
A casa fora toda reformada. Paredes, pisos, encanamentos, fiação. O que se via e o que se escondia. Tudo estava nos planos da reforma. De dentro para fora. Do interior para o exterior.
O banheiro social não fugira à regra. Fora cuidadosamente planejado. Paredes expostas e abertas deixavam à mostra os encanamentos novos e os conduites totalmente desobstruídos.
Todo mundo sabe que quando uma reforma está sendo realizada, todo cuidado é pouco. “Um olho no peixe, outro no gato”. Não dá para relaxar. Reforma é tarefa árdua e estressante e quem não quer se arriscar, ou não tem tempo para acompanhar é melhor nem começar.
O bom mestre de obras não concorda com “O que os olhos não veem o coração não sente”, mas nem sempre conseguimos um mestre eficiente e cumpridor de seus deveres mais minuciosos. O olhar deve estar sempre atento e a presença constante faz toda a diferença. Meu sogro era mestre e sabia bem que “Quando o gato não está os ratos fazem a festa”. Jamais descuidava de suas obrigações em uma obra. O material tem que ser o melhor e o correto, mas a maneira de se fazer o serviço é de importância fundamental.
Certa vez, ao inspecionar um sobrado que fazíamos para nossa família, meu sogro me disse todo orgulhoso: “Vocês pediram um sobrado, mas aqui tem fundação para quatro andares. Tudo muito bem feito”. Naquela época tínhamos apenas quatro filhos e ele pensava no futuro das crianças. Hoje teria que fazer fundação para sete andares…
Esse trabalho bem feito que não aparece é o que sustenta uma casa bem feita. Esse olhar atento do mestre de obras ao que vai ficar por baixo do piso, entre as paredes, oculto e invisível aos olhos de todos é o que faz a água escorrer pelas torneiras e chuveiros, a luz acender ao simples toque do interruptor, o telefone tocar quando alguém deseja te encontrar, enfim quantas e tantas coisas que só funcionam quando alguém se preocupou com o trabalho escondido.
É bem verdade, o leitor diria que, poucas são as pessoas que perguntam sobre encanamentos e fiações quando estão interessadas em uma casa. O que chama a atenção é o que salta aos olhos: azulejos e pisos bonitos e bem colocados, torneiras cromadas e chuveiros potentes, armários funcionais e cômodos bem dispostos. Só com o uso é que os problemas de um possível trabalho mal feito podem surgir e, aí sim, lembramo-nos dos canos e fios que não vemos, embora sejam tão importantes.
Foi assim com o nosso banheiro social. Apartamento reformado, tudo arrumado e pronto para o uso. Azulejos e piso bem colocados. Chuveiro e Box escolhidos com cuidado. Peças que valorizavam o ambiente. Espelho e peças decorativas para torna-lo mais agradável. Toalhas e tapetes contrastando com as cores suaves. Pronto. Bonito. Funcional.
Será?
Não demorou muito e o vizinho do andar de baixo interfona para avisar que há um vazamento em nosso banheiro e que o mesmo está afetando o teto de seu banheiro.
Como? Acabamos de reformar. Tudo trocado. Tudo tão perfeito. Descemos para olhar o famigerado teto. Uma mistura de decepção, acabrunhamento, tristeza ao deparar com o lustre do vizinho cheio de água. Água que gotejava sem parar como a martelar nosso coração. Algo precisava ser feito: procurar a fonte do vazamento e para isso era preciso quebrar.
Passados alguns poucos dias começa o trabalho porque “Não adianta chorar pelo leite derramado”. O que é preciso fazer deve ser feito o mais rápido possível. E quem mora em prédio sabe bem disso como ninguém mais.
Chateação e dor de cabeça à parte, vimos o banheiro ser quebrado, detonado à procura do vazamento que gerou toda a bagunça. Depois de martelar aqui e ali, o pedreiro aponta para uma trinca, muito fina, muito pequena em um dos canos. É aqui. Tira e troca. Arruma e espera. Verifica e aguarda. Parou de vazar? Parece que sim. Que bom! Hora de fechar e embelezar tudo de novo.
Volta tudo ao normal no apartamento e na casa do vizinho. Podemos respirar aliviados. Será?
“Água mole em pedra dura tanto bate até que fura”. E não é que fura mesmo? Passados alguns meses o vizinho toca a campainha e mostra, de cara, todo seu descontentamento.
– Está vazando de novo.
A tristeza estampada no rosto não me permitiu disfarçar o incômodo da visita que trazia a notícia inesperada. Como pode? O serviço acabou de ser feito. Chamamos meu encanador, seu encanador ou o encanador que vem dos palpites alheios? Meu encanador.
Lá vem ele novamente e coçando a cabeça vai logo dizendo que água é coisa danada. Se tiver um espaço, minúsculo que seja, encontrará um jeito de se espalhar e fazer estrago.
Quebramos a segunda vez e para encurtar a história, na terceira decidimos não usar mais o chuveiro. Conhece aquela do banheiro funcional que virou lavabo? Pois é essa mesmo. Afinal, temos outros dois chuveiros. E a síndrome de Polyana acabou se instalando de tal forma que vimos que era melhor assim: agora temos um lavabo. Que bom!!!
Volta quase tudo ao normal no apartamento e na casa do vizinho. Podemos desfrutar de nosso novo lavabo com chuveiro decorativo. E o vizinho pode ficar feliz e sorrir ao encontrar-nos no elevador. Será?
Dessa vez a visita do morador de baixo demorou um pouco mais para acontecer, mas lá vem ele novamente com ar de exausta chateação:
– Está vazando. De novo.
Confesso que pensei em fechar a porta e mandar o “chato” vizinho embora. Pensamento rápido, mas verdadeiro. De volta a minha normalidade pensei em transformar o fatídico banheiro/lavabo em uma despensa. Até imaginei as prateleiras sendo colocadas nas paredes depois de fechados todos os canos e passagens. Ou poderia ser uma extensão da lavanderia. Um lugar para guardar as roupas. Um lugar onde não houvesse espaço para canos e água fugitiva. Meus pensamentos voaram longe e ao retornar lá estava ele. O vizinho. Esperando uma resposta.
O “quebra tudo” vai começar novamente, não porque eu deseje ter um banheiro ou um lavabo, mas porque o vizinho não tem culpa do que acontece veladamente no interior das paredes de minha casa. O banheiro será investigado na próxima semana.
Tudo é para o bem. E como acredito que tudo nos remete à reflexão, vamos aproveitar o momento e tirar desse vazamento algum proveito.
Às vezes, as coisas em nossa vida nos parecem estar muito bem. Aparentemente, tudo continua em ordem e obedecendo a seus propósitos e objetivos.
Aí chega alguém e diz que é preciso tomar certos cuidados, que as coisas não estão tão boas quanto parecem e uma atenção maior deve ser levada em conta.
Podemos agir de duas formas diante do “vizinho que nos alerta sobre o vazamento”:
Ou dizemos a ele que não está acontecendo nada de ruim. Que tudo está como antes. Nada foi mudado. E ainda o convidamos a ter mais fé, mais confiança, pois tudo parece tão lindo quanto antes, ou nos enchemos de coragem e começamos a procurar o “vazamento” que há de pôr abaixo tudo de bom que foi construído.
A primeira opção é mais cômoda e por um tempo causa desconforto apenas a poucas pessoas. A maioria não sente o que está acontecendo como não sentiam os moradores do apartamento que causava o vazamento, nem os outros moradores do prédio. Apenas o vizinho de baixo sentia claramente os problemas causados. Só ele sofria as consequências naquele momento.
Na vida também é assim. Muitas vezes a grande e imensa maioria não percebem o que uma mudança ainda não tão exposta, pode vir a causar de malefícios. Isso não quer dizer que os malefícios não estejam acontecendo. Eles podem estar apenas, camuflados.
A segunda opção é muito mais dolorosa, porque causa desconforto e incômodo a quem precisa realizar as mudanças e nem sempre elas estão às claras e visíveis aos interessados.
Nessa escolha árdua e muitas vezes, complicada, às vezes, é preciso expor aquilo que se gostaria de deixar oculto: a fissura, a trinca que causa o problema. Não é tarefa fácil. É preciso ter coragem para derrubar a parede que, externamente, está tão bonita e bem acabada.
A escolha do que se deve fazer é sempre custosa, porque engloba muitos fatores. É mais fácil rotular o vizinho de baixo de “chato”, do que levar em consideração o que ele nos fala. É mais fácil dizer que tudo continua igual, do que reconhecer as fissuras que causam problemas. É mais fácil fingir que nada está acontecendo, do que arrebentar as “paredes” que escondem o mal.
É mais fácil, mas nem sempre o caminho mais curto é o melhor caminho.
Quantas reflexões podemos tirar de um vazamento no banheiro do 7º andar de um prédio de 16 andares. Quantas coisas a se pensar e aplicar para a vida cotidiana. Quanto mal evitado se o problema for resolvido e quanto mal realizado se deixa-lo disfarçado.
E se tudo tivesse acontecido no 16º? Quanta responsabilidade na escolha do que fazer… O que os olhos não veem o coração não sente no primeiro momento, mas sofrerá as consequências mais adiante, com certeza.