Ubiratan Jorge Iorio
Quem ainda não ouviu na empresa em que trabalha uma frase desse tipo: “Ih, é melhor não se meter nisso, porque foi uma decisão política”? Ou: “Sei que você está certo, mas meu conselho é deixar pra lá, porque a ordem veio de cima”? Ou, ainda: “Cara, te aconselho a não bater de frente com Fulano, porque ele é ligado ao diretor Beltrano”?
Creio que você já entendeu onde quero chegar, não? Na verdade, a uma conclusão bastante óbvia, a de que as soluções ditas políticas não costumam ser as melhores, quando comparadas com as soluções técnicas, ou mesmo com as formuladas pelo simples bom senso. No entanto, quando levada ao nível institucional, essa constatação quase axiomática parece perder todo e qualquer resquício de certeza, especialmente quando se trata de questões relativas à sociedade, à economia e também ao ordenamento moral e jurídico.
A impressão que se tem é que novecentos e noventa e nove em cada mil pessoas acreditam que, para todas essas questões, as soluções políticas são superiores às econômicas e morais e, mesmo, às de ordem jurisprudencial baseadas em usos, costumes e tradições (direito consuetudinário). E o perigo torna-se maior se levarmos em conta que uma boa parte dessas decisões encontra apelo popular, porque são disfarçadas de boas intenções, quando seu verdadeiro intento é a disputa por poder.
Essa crença absurda em uma pretensa superioridade da ação política para melhorar a vida das pessoas foi um dos grandes males do século XX, do qual, ao que tudo indica, ainda levaremos muitos anos para nos livrarmos. Na economia, o keynesianismo e o Estado do Bem-Estar são exemplos disso. Ora, sabemos que a riqueza de um país é necessariamente construída por pessoas e pelas providências práticas que tomam, pela utilização de recursos humanos, de qualidades morais, por instituições políticas e econômicas que respeitam e incentivam a liberdade de escolha, por leis que não sejam meros comandos ou ordens, mas normas gerais de justa conduta, prospectivas, abstratas e impessoais e, portanto, aplicáveis a todos os habitantes, inclusive os que eventualmente estiverem ocupando o poder. Por conseguinte, o desenvolvimento de uma sociedade não depende de pretensas soluções políticas, mas da ação humana prática no âmbito da economia, que leva os indivíduos a melhorarem (ou piorarem) de vida, supondo que suas escolhas tenham sido as melhores (ou as piores). É, enfim, a busca pela satisfação individual concretizada pela ação humana nas escolhas econômicas que move a roda do mundo e gera riqueza.
Já a política, por outro lado, na prática, nada mais é do que a busca pelo poder e, uma vez este alcançado, por sua manutenção. Ou seja, o poder é pura e simplesmente o traço político da ação humana individual. Acreditar que políticos – por definição, pessoas que agem com vistas a ganhar e aumentar seu próprio poder, quando não sua tirania –, possam agir pensando angelicamente na quimera do “bem comum” é de uma ingenuidade inacreditável.
Passo agora ao que desejo assinalar. O dia 31 de agosto de 2016 já entrou para a história do Brasil e por dois motivos: o mesmo Senado que cassou por maioria de quase três quartos o mandato da presidente do país livrou-a, na mesma sessão, da inabilitação para o exercício de funções públicas por oito anos, que é o prazo estipulado na Constituição.
O primeiro – que os sabujos da presidente impedida insistem em chamar de “golpe” – está previsto na Carta de 88 e é o estatuto do impeachment, inicialmente contemplado por uma lei de 1950. Cumpriram-se todos os requisitos exigidos, o processo durou cerca de nove meses, ouviram-se dezenas de testemunhas e informantes, foram respeitados todos os direitos da defesa até ser votado finalmente no Senado, na presença de toda a mídia nacional e estrangeira e sob a regência do presidente do Supremo Tribunal Federal. Cá entre nós, se isso foi golpe, então com certeza os bois têm penas e as garças são peixes. É certo que foi votado primeiramente na Câmara baixa e depois no Senado, que são instituições políticas por definição, mas foi simples aplicação da lei. E sob a égide do Judiciário.
O segundo fato – este comemorado pelos mesmos bajuladores vestidos de vermelho – também foi votado no Senado, na presença de toda a mídia nacional e estrangeira e sob a regência do presidente do Supremo Tribunal Federal. Consistiu do fatiamento, urdido politicamente à socapa, do dispositivo constitucional que estabelece com clareza cristalina: o ocupante de cargo público impedido é punido com a perda de seu mandato e com a inabilitação para exercer cargos públicos durante os oito anos seguintes. Escrevendo de maneira direta: a Constituição estabelece que a pena é uma só, que não existem penas e muito menos autonomia entre elas!
Eis por que as soluções políticas sempre são perigosas. Aí é que entrou o golpe. E um golpe de mestre, de faixas-pretas décimo Dan nascidos e criados nos tatames da (má) política, previamente treinado e tramado, como assinalou Fernando Gabeira, “por gente graúda”. Sim, por gente muito graúda. Um golpe que teve vários ganhadores: de um lado, a presidente deposta, seu partido e seus fanáticos defensores, que poderão sempre dizer, com o descaramento que lhes é característico, que a referida senhora foi mesmo vítima de um golpe, já que sequer foi condenada; e de outro todos os políticos que correm o risco de perderem seus mandatos por conta dos desdobramentos da operação Lava Jato. Um golpe sim, porque o presidente do STF (simulando que estava tomando a decisão de acolher ou não o fatiamento ali, naquele momento, quando na verdade ficou patente que isso não era verdade), o presidente do Congresso (que declarou ao microfone seu voto antes da aberração ser votada, o que não lhe era permitido) e os senadores que votaram a favor dessa grave irregularidade, todos, sem qualquer pingo de dúvida, atropelaram a Constituição. Como observou o ministro Gilmar Mendes:
“Vejam vocês como isso é ilógico: se as penas são autônomas, o Senado poderia ter aplicado à ex-presidente Dilma Rousseff a pena de inabilitação, mantendo-a no cargo. Então, veja, não passa na prova dos nove do jardim de infância do direito constitucional. É, realmente, do ponto de vista da solução jurídica, parece realmente extravagante.”
E podemos indagar: se ocorresse o caso contrário, em que o Senado aprovasse ambos, o impedimento e a inelegibilidade para cargos públicos, esta última deveria ser aplicada ao mandato atual da presidente, ou, em termos práticos, deveria determinar um impeachment que teria acabado de ser rejeitado, ou o prazo de oito anos estipulado como pena só passaria a ser contado a partir de 1º de janeiro de 2019, primeiro dia após o final do mandato da presidente? Vejam que situação absurda!
Todo esse triste episódio serve para pôr em relevo que as soluções políticas são de fato soluções para envolvidos em suspeitas de falcatruas, mas problemas para todo o restante da população. Esperemos que o plenário do Supremo, acossado pelos gritos de juristas de renome e pela insatisfação popular, restabeleça a lei e a ordem, apesar de sabermos que aquele egrégio tribunal, de tempos para cá, tenha se transformado em palanque político e palco de vaidades e se afastado de sua missão constitucional de preservar a lei. Em uma decisão política repugnante, o presidente do Supremo rasgou publicamente a Constituição do país. Que seus pares o façam remendá-la, pelo menos.
ARTIGO DO MÊS. 02 DE SETEMBRO DE 2016. ANO XV. Nº 174