Da BBC News Brasil em São Paulo, 06 de junho de 2020
Nossa dificuldade em lidar com modelos e projeções evidencia ‘analfabetismo de dados’, diz especialista
Desde projeções de novos casos de coronavírus até o chamado “achatamento da curva” de contágio, conceitos e modelos matemáticos entraram no noticiário e nas discussões da pandemia – e, para alguns especialistas, a nossa dificuldade em entender e aplicar esses conceitos é mais uma evidência de que a forma como aprendemos matemática na escola está muito longe de nos preparar para usar a disciplina na vida real.
Esse foi um dos assuntos debatidos no seminário online “Como ensinar a matemática do futuro?”, realizado pelo Instituto Sidarta (dedicado a projetos e políticas no ensino da matemática) em 28 de maio.
“Estamos ensinando a matemática do século 19 nas nossas escolas, e isso cria uma lacuna na formação que damos aos jovens para o exercício de profissões e para munir as crianças com ferramentas para entender o mundo à nossa volta, que é o objetivo da matemática”, afirmou no encontro virtual Marcelo Viana, diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa).
E quais são essas ferramentas?
Viana citou algumas: estatística e probabilidades, por exemplo, essenciais para entendermos o comportamento do novo coronavírus e o impacto das medidas de prevenção, são temas que o matemático acredita que “estavam até há pouco tempo praticamente ausentes de sala de aula”, embora ele ache que isso esteja mudando com a adoção da nova Base Nacional Curricular Comum, documento que traçou novas diretrizes para o ensino público e privado do país.
Para além da pandemia, estatística e probabilidades têm infinitos usos cotidianos, dos mais simples – como entender a probabilidade de chuva em um dia qualquer – aos mais complexos, como identificar padrões de infecções em hospitais para adotar medidas de prevenção.
De achatamento da curva até projeções de contágio, quantos de nós entendemos os conceitos matemáticos discutidos na pandemia?
“Outra área que custa para chegar à sala de aula é a combinatória, base da ciência da computação e da tecnologia da informação”, agregou Viana. A análise combinatória permite que se analise quantas combinações diferentes podem ser feitas com um conjunto de elementos. Por exemplo, com as 26 letras do alfabeto e dez números, quantas combinações de senhas de 8 dígitos eu consigo fazer?
(A resposta é: 2,8 trilhões de senhas).
Viana citou, por fim, o estímulo ao raciocínio lógico como algo “absolutamente negligenciado (no ensino da matemática), o que é trágico”, por se tratar de uma habilidade considerada essencial para formar trabalhadores e cidadãos para o século 21.
‘Alfabetismo de dados’
No Brasil, só 16% dos alunos concluem o ensino fundamental (9° ano) com aprendizado adequado em matemática, segundo os dados da Prova Brasil 2017.
Mas os problemas no ensino da disciplina não são limitados ao país. “Os currículos não estão preparando os estudantes para serem alfabetizados na leitura de dados”, diz à BBC News Brasil o acadêmico americano Jack Dieckmann, diretor de pesquisa do Youcubed, projeto de ensino de matemática abrigado na Universidade Stanford (EUA). Dieckmann também participou do encontro de 28 de maio.
Ser alfabetizado em dados significa ser capaz de entender números, gráficos, probabilidades ou questões lógicas, por exemplo, e conseguir usar esses dados para entender padrões ou mesmo tomar decisões.
“Muitos jovens não estão engajados no ensino online, mas eu diria que eles não estavam engajados no ensino mesmo antes disso. A pandemia só jogou uma luz sobre isso – sobre a utilidade do que pedimos que eles aprendam”
“São ensinados alguns conceitos (relacionados ao uso de dados), mas no geral é um tópico negligenciado”, prossegue Dieckmann. Embora se ensinem conceitos básicos como média, mediana etc, ele diz que falta, em geral, trazer uma “abordagem exploratória” para dentro da sala de aula, fazendo a conexão entre esses conceitos e os padrões, conexões e usos para eles na vida real dos alunos.
Na pandemia, por exemplo, estudantes das séries mais velhas podem usar as bases de dados para identificar padrões de infecções em suas cidades ou regiões.
No seminário online, a professora de matemática Maitê Salinas, do colégio ligado ao Instituto Sidarta, em São Paulo, relatou como ensinou a seus alunos, em uma aula remota, o comportamento do novo coronavírus. Primeiro, propôs a eles um cenário fictício, em que o número de contaminados aumentasse em três casos por dia. Daí, ouviu as hipóteses dos alunos para como calcular a quantidade de casos depois de cem dias.
Em seguida, apresentou-lhes, visualmente, os dados reais do crescimento do vírus. “Eles logo perceberam que ‘não está somando três (casos por dia), está multiplicando por três'”, relatou Salinas.
E assim os alunos perceberam a diferença entre um crescimento linear e um crescimento exponencial.
‘O número de casos está multiplicando por três”: uma ideia de aula para explicar o conceito exponencial do contágio provocado pelo coronavírus
Matemática para o século 21
Jack Dieckmann defende que matemáticos e professores pensem também em formas de integrar o ensino da matemática a outros temas relevantes para o século 21, como a sustentabilidade, as mudanças climáticas e o engajamento eleitoral. Ou seja, como modelos, simulações e projeções matemáticos podem ajudar os estudantes a entender seu papel nas questões mais importantes da atualidade?
“Sabemos que há a necessidade disso, e temos que criar materiais e práticas que permitam aos estudantes interagir com o mundo e não serem tão passivos (no estudo da matemática)”, diz o pesquisador.
Caso contrário, diz ele, as pessoas se verão diante de números, gráficos e tendências – seja de avanço do coronavírus ou das mudanças climáticas – sem entender seu próprio papel em mudar essa realidade.
“Se não entendemos os dados, só o que eles nos causam é medo. Se somos alfabetizados em dados, sabemos que essas tendências são influenciadas e mudadas (por nós mesmos).”
‘Errar na matemática é sinal de crescimento’
O Youcubed, projeto no qual Dieckmann trabalha em Stanford, propõe práticas de ensino matemático mais visuais (por exemplo, com desenhos, cubos e barbantes) e mais voltadas ao uso de dados em questões e problemas cotidianos.
Também critica a ênfase do ensino tradicional na memorização, na quantidade de acertos das crianças e na rapidez com a que elas resolvem os exercícios. Os argumentos contra isso são de que
1) a memorização está desprovida de significado,
2) valorizar a rapidez desestimula a maior parte dos estudantes, e
3) de que o erro e o esforço para corrigi-lo são, na verdade, uma oportunidade de formar novos caminhos neurais no cérebro, que vão ajudar o aluno a de fato aprender matemática.
O site em português do Youcubed tem agora uma página especial com exercícios numéricos e atividades matemáticas que possam ser feitas em casa durante a pandemia, para crianças de diferentes idades.
Youcubed propõe exercícios e atividades de raciocínio que possam ser usadas na pandemia
A ideia do projeto é que a matemática deixe de ficar na memória de estudantes como algo assustador e traumático e passe a ser vista como uma “habilidade essencial à vida”.
Isso exige uma mudança na forma de pensar dos alunos, mas não só.
“É preciso mudar também currículos escolares, a velocidade (cobrada dos alunos), a colaboração entre todos e o papel dos professores, que passam a ser aprendizes nesse processo”, afirma Dieckmann.
O que vai ser do ensino no pós-pandemia
Embora haja a percepção de que a pandemia vai mudar a dinâmica das escolas e o ensino da matemática, a forma como isso vai acontecer ainda é uma interrogação.
Como promover o ensino colaborativo da matemática e a resolução conjunta de problemas, se os alunos provavelmente terão de manter o distanciamento entre si, mesmo dentro de sala de aula, por um bom tempo?
“O que o colaborativo vai significar no pós-pandemia ainda é uma questão em aberto”, diz Dieckmann. “O que sabemos é que colaboração não necessariamente precisa ser algo que ocorre simultaneamente e no mesmo local. Podemos usar soluções tecnológicas que permitam que os estudantes trabalhem em um mesmo exercício (mesmo que um não esteja ao lado do outro). Claro que no Brasil existem desigualdades sociais (que dificultam isso).”
Embora o momento atual evidencie as dificuldades do ensino remoto, Dieckmann argumenta que isso tem mais a ver com o modelo de ensino do que com o distanciamento social em si.
“Muitos jovens não estão engajados no ensino online, mas eu diria que eles não estavam engajados no ensino mesmo antes disso. A pandemia só jogou uma luz sobre isso – sobre a utilidade do que pedimos que eles aprendam”, afirma.
“Na volta às aulas (presenciais) vai ser difícil, sem dúvida, de fazer com que os alunos se sintam seguros, estáveis e prontos para entender a nova realidade. No momento ainda não vemos luz no fim do túnel, mas temos uma oportunidade de olhar para o que pode ser melhorado e para criar um novo normal, em vez de voltar para o normal de antes, que não estava funcionando.”