Carlos Alberto di Franco 07/04/2009
Tudo começa numa estação do metrô, onde o jogador encontra uma mulher e começa a molestá-la. Os estupros ocorrem primeiro no trem e depois num parque da cidade. Se o criminoso conseguir fotografar a vítima nua e chorando, ele tem acesso às duas filhas da vítima, também as violenta e, depois, obriga todas a abortarem.
Se o leitor imagina que estou relatando mais um caso escabroso de crime sexual, errou. Trata-se de uma reportagem, dura e dramaticamente verdadeira, sobre o mercado informal de entretenimento. Renato Machado, repórter do Estado, radiografou o conteúdo e a comercialização de games vendidos livremente na internet e nas ruas de São Paulo.
A reportagem do jornal encontrou o jogo japonês para computador, Rapelay, nos catálogos de pelo menos cinco vendedores ambulantes que trabalham na região das Ruas Santa Ifigênia e Timbiras, no centro de São Paulo. O Rapelay foi produzido em 2006 pela empresa japonesa Ilusion e no fim do ano passado chegou a outros países. Os jogos podem facilmente ser baixados pela internet, em sites de compartilhamento.
Além de ter como foco a violência sexual, o jogo também choca ao mostrar casos de pedofilia, pois uma das vítimas usa um uniforme de estudante colegial e a outra tem 10 anos de idade, segundo resenhas publicadas sobre o jogo. O estupro contra a segunda é feito num quarto com ursos de pelúcia. Após elas engravidarem, o criminoso tem de convencê-las a abortar, ou será jogado por elas nos trilhos do trem.
O Ministério Público Federal (MPF) tomou conhecimento da existência do jogo por meio de um oportuno alerta da juíza da 16ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo Kenarik Bouijkian Felippe. Como faz parte do Grupo de Estudos de Aborto, ela recebeu um e-mail com o conteúdo do Rapelay e repassou para o MPF.
O caso está sendo investigado pelo Grupo de Repressão a Crimes Cibernéticos do MPF. De acordo com o procurador da República Sérgio Suiama, uma das dificuldades para abrir uma investigação criminal é que a legislação brasileira não tipifica o abuso sexual simulado de crianças, adolescentes e adultos. “É um absurdo um jogo em que o objetivo seja um estupro, mas infelizmente não há preceitos legais para analisarmos o caso. Ele faz parte de uma grande discussão jurídica sobre até onde vai a liberdade de expressão e onde começa o crime”, diz.
Conversei com o procurador. O que ele percebe, com razão, é a dificuldade de reprimir um jogo produzido em outro país e que aqui só é comercializado clandestinamente. Combater a pirataria é importante, mas, como todos sabemos, não é nada fácil. Ademais, sublinha Sérgio Suiama, o monitoramento dos sites de compartilhamento é extremamente complicado. Esbarramos na dramática carência de normas internacionais que sejam de fato capazes de enfrentar os excessos do mundo virtual.
As empresas de comunicação e entretenimento, os legisladores, a sociedade e a família têm papel fundamental na luta contra ações criminosas e marcadamente antissociais. Cabe-nos a responsabilidade de falar claro. A liberdade de expressão termina onde começam o crime e o desrespeito aos valores éticos fundamentais. Produzir e comercializar um jogo que premia estupro e pedofilia é crime de primeira grandeza. A impunidade é uma arma devastadora da estabilidade social. É preciso encontrar mecanismos legais eficientes na repressão desses delitos.
Nós, jornalistas, formadores de opinião e empresários da comunicação, precisamos assumir firmemente a bandeira da cidadania. As empresas de comunicação éticas e sérias produzem entretenimento de qualidade e não podem ser confundidas com falanges criminosas do mundo virtual. Por isso devemos defender editorialmente as fronteiras que separam a liberdade de expressão do simulacro da liberdade. A falsa liberdade desemboca facilmente no crime hediondo. Matérias como as do repórter Renato Machado estão na melhor linha do jornalismo de qualidade.
Atualmente, graças ao impacto da internet, qualquer criança pode ter acesso a conteúdos corrosivos. Não é preciso ser psicólogo para que se possam prever as distorções afetivas, psíquicas e emocionais dessa perversa exposição virtual. Psiquiatras ouvidos pela jornalista Adriana Carranca, também repórter do Estado, foram enfáticos: os efeitos da exposição à violência são devastadores. A coordenadora da Psiquiatria do Hospital Albert Einstein, Ana Luiza Simões Camargo, explica que os jogos provocam uma certa permissividade em relação a situações de violência. “Aquilo que é horroroso se torna banal e até divertido”, adverte a especialista.
Mas a família é insubstituível. A demissão do exercício da paternidade traz consequências que ultrapassam, de longe, o âmbito familiar. A ausência de limites sempre acaba mal. Frequentemente, com o apoio das próprias mães, inúmeras crianças estão sendo condenadas prematuramente a uma vida “adulta” e sórdida. Privadas da infância, elas estão se comportando, vestindo, consumindo e falando como adultos. A inocência infantil está sendo impiedosamente banida. Por isso, a multiplicação dos casos de pedofilia e abuso sexual não deve surpreender ninguém. Trata-se, na verdade, das consequências da escalada da erotização infantil e da impunidade do criminoso e lucrativo mercado da pornografia.
A falta de limites e a ausência da família estão no cerne do problema. Se os filhos não são educados para o exercício da liberdade, equilibrada e responsável, pouco se pode fazer. É preciso chegar junto. Acompanhar, orientar, limitar. É preciso saber dizer não. O Brasil precisa, com urgência, resgatar os valores e as instituições básicas da sociedade.
Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo (www.masteremjornalismo.org.br), professor de Ética e doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra, é diretor da Di Franco – Consultoria em Estratégia de Mídia (www.consultoradifranco.com). E-mail: [email protected] |