Valter de Oliveira
O drama da imigração
Difícil encontrar pessoas que não se comovam com as palavras do Papa Francisco defendendo a acolhida de imigrantes e com seus pedidos para que os países de cultura ocidental os recebam. Especialmente, se lutam pela sobrevivência ao fugir de áreas de conflito. “Façamos pontes, não muros”, exclamou o Pontífice várias vezes. Entretanto, houve quem não entendesse a mensagem. No mínimo o Papa seria um romântico que não teria noção que a abertura para tantos muçulmanos poderia colocar em risco o que resta da Civilização Ocidental.
Quem tem razão?
De início lembremos que o acolhimento, a caridade, a solidariedade estão na chamada “regra de ouro do direito natural”, ou seja, “fazer aos outros aquilo que queremos que nos façam”. Na mesma linha disse Nosso Senhor: “Assim, em tudo, façam aos outros o que vocês querem que eles lhes façam; pois esta é a Lei e os Profetas”. (Mt, 7:12).
Sucede, como o sabemos, que o Filho de Deus elevou a caridade a um nível mais alto: “Tende ouvido o que foi dito: Amarás o teu próximo e poderá odiar teu inimigo. Eu, porém vos digo: amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos maltratam e perseguem”. (Mt 5, 43-48)”.
Em suma, quando o Papa Francisco nos convida a sermos solidários ele nada mais faz do que seguir fielmente o principal dos mandamentos: a caridade. “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos, por amor de Deus”.
Seria isso ingenuidade?
Nem de longe. Vale para os Estados e para as nações, o que vale para cada um de nós. Todos somos convidados a pensar naqueles que sofrem e a fazermos, por eles, nossa parte, inclusive com sacrifícios. Isso significa que devo colocar em minha casa 10 ou 20 moradores de rua? Não. Como ensina S. Tomás o amor se exerce através de círculos concêntricos. Primeiro o reto amor por mim mesmo e minha família, depois parentes e amigos, e assim por diante. Cada um de nós deve responder diante de Deus se fizemos pelo próximo tudo o que poderíamos fazer.
O mesmo ocorre, por analogia, com as nações.
A Igreja, através do ensinamento da vida e da doutrina de Cristo procura formar nossa consciência e nos convida à íntima união com o Senhor. Nossa atuação livre e apoiada na graça vai nos ajudar a fazer as escolhas corretas na vida temporal.
Neste sentido, especialmente nos últimos tempos, a Igreja tem convidado a todos os leigos a serem cada vez mais atuantes na vida pública e assumirem suas responsabilidades. Isso vale para todos os cidadãos, governantes e governados.
Ao mesmo tempo a Igreja enfatiza a autonomia do poder temporal, mas não a autonomia pregada por libertários e revolucionários, desvinculada da moral. É necessário que os dirigentes levem em conta princípios e valores universais, que respeitem a integralidade da pessoa humana, que procurem a harmonia dos valores individuais com o bem comum. A Igreja nunca aceitou a autonomia imaculada do indivíduo e tampouco a concepção absoluta ou totalitária do Estado.
A Igreja e o clericalismo
O magistério católico nos ensina que uma coisa é o poder temporal, outra é o poder espiritual, devendo haver entre ambos o mútuo respeito de cada parte.
No passado a Igreja lutou para evitar o chamado cesaro-papismo, isto é, o poder temporal dirigindo o poder espiritual e o soberano colocando-se, por exemplo, como senhor dos bispos.
Por outro lado, quando se pede que o Estado leve em conta o Cristianismo – ou, em nossos dias, valores transcendentes – não quer dizer que os governantes tenham a obrigação de seguir diretrizes episcopais e nem mesmo opiniões do Papa, por mais abalizadas que sejam. Se competisse aos leigos e ao Estado seguir diretrizes eclesiásticas em matéria temporal não haveria a justa autonomia do poder temporal.
Prova disso é a carta do Papa Francisco ao cardeal Marc Ouellet, sobre o papel do leigo na vida pública recordando que esta é uma das maiores riquezas do Vaticano II:
(…) “Não é o pastor a dizer ao leigo o que ele deve fazer e dizer, ele sabe tanto ou melhor que nós. Não é o pastor a ter que estabelecer o que os fiéis devem dizer nos diversos âmbitos”. (1)
Estado e Geopolítica
O chamado Estado Moderno, nascido no final da Idade Média e na Renascença, gradualmente transformou-se em um poder soberano. Esse Estado em primeiro lugar rechaçou a influência da Igreja e depois, gradualmente foi ampliando seu poder. Hoje, em muitos lugares, chega a afirmar que não está sujeito a nenhum imperativo ético. É o Estado laicista (2).
No fim do século XIX e no começo do XX a Geopolítica influenciou profundamente os objetivos e a atuação dos Estados. Depois, a Geopolítica, enquanto disciplina perdeu prestígio (3). Entretanto, um dos seus princípios básicos, continua sendo plenamente aceito pelos governantes. Trata-se do interesse nacional (4).
É possível conciliarmos os interesses e obrigações do Estado Moderno– que pode ser sofrer ameaças internas e externas – com os princípios da Doutrina Social da Igreja? No caso específico: o que deve fazer um bom governante diante do posicionamento do Papa face aos imigrantes?
- Em primeiro lugar entenderá e apoiará o apelo papal para que, em seu país, dentro do possível, se leve em conta a importância do princípio da solidariedade.
- Em concreto procurará ver como acolher os necessitados de modo digno levando em conta, também, as necessidades de seu próprio povo. Por isso mesmo deverá levar em conta quantos sua nação tem condições de abrigar.
- A situação é mais complexa nos EUA e na Europa para onde têm acorrido milhões de refugiados islâmicos. Ora, tal imigração, apoiada fortemente e de modo oportunista por aqueles que promovem uma “jihad” contra o que resta da civilização ocidental e cristã, pode se tornar um grave problema graças à infiltração fundamentalista muçulmana.
- Por isso mesmo, tal governante deve também levar em conta os legítimos interesses nacionais e a preservação dos valores e da cultura do país, o que inclui, evidentemente, o futuro do cristianismo no país. Cabe a ele, agir conforme a ética e decidir a melhor maneira de evitar males presentes e futuros a seus compatriotas. Países são soberanos, têm territórios definidos, têm legítimas barreiras que visam defender a integridade nacional e os legítimos direitos de seu povo. Assim, caso decidam colocar legítimas barreiras à imigração estarão simplesmente cumprindo um dever ético. Estarão agindo – ainda que não o saibam – conforme o magistério da Igreja que respeitará a legítima autonomia do poder temporal.
Se isso não acontecesse cairíamos no clericalismo, ou seja, na pretensão descabida da Igreja em exercer o controle sobre os campos sócio-político, socioeconômico e sociocultural das nações. . Clericalismo que “anularia a personalidade dos cristãos” (e do laicato) tratando (a este) como mandatário”. (5)
Em suma, O Papa tem todo o direito, e o dever, de pedir que sejamos acolhedores. E ele tem plena noção que isso deve ser feito nas devidas condições. É o que vemos em resposta a uma jornalista quando de seu retorno de viagem à Suécia:
“Sobre o pensa em relação aos países que fecham as fronteiras, o Papa disse que: “na teoria não se pode fechar o coração a um refugiado mas há também a prudência dos governantes; devem ser muito abertos a recebe-los, mas também fazer o cálculo de como organizá-los, porque um refugiado não se deve somente receber, mas integrá-lo. Se um país tem uma capacidade de vinte, digamos assim, de integração, faça os vinte. Se outro tem mais, faça mais. Mas sempre com o coração aberto: não é humano fechar as portas, não é humano fechar o coração” (6).
É preciso ser mais claro?
Notas:
- https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2016/documents/papa-francesco_20160319_pont-comm-america-latina.html (obs: aqui, como na nota 5, o Papa enfatiza principalmente o erro do clero em querer exercer domínio indevido em ações de apostolado).
- Não confundir com Estado laico (que não é oficialmente religioso). O laicismo é “uma ideologia que leva gradualmente, de forma mais ou menos consciente, à restrição da liberdade religiosa, até promover o desprezo ou a ignorância de tudo o que seja religioso, relegando a fé à esfera do privado e opondo-se à sua expressão pública”. (João Paulo II, 24.01.2005). Para uma melhor compreensão do tema sugerimos a leitura de texto do padre Francisco Faus: http://blog.quadrante.com.br/laicidade-e-laicismo-por-francisco-faus/
- Devido a ter sido muito usado pela ideologia nazista. Hoje, para se discutir as relações de poder entre Estados soberanos temos a disciplina “Relações Internacionais”.
- É o que afirma a chamada corrente realista na teoria das Relações Internacionais: “(…) cada Estado é juiz, parte e executor nos eventuais conflitos com terceiros (…) todo Estado é, em última instância, o responsável final por sua própria segurança e sobrevivência enquanto Estado”. ALBUQUERQUE, José Augusto Guillon. Relações Internacionais Contemporâneas: a ordem mundial depois da Guerra Fria, Petrópolis, RJ: Vozes, 2005, p. 21)
- http://www.acidigital.com/noticias/papa-alerta-contra-clericalismo-e-diz-que-leigos-sao-o-coracao-da-igreja-11408/
- http://br.radiovaticana.va/news/2016/11/01/papa_no_avião imigração_humano_fechar_as_portas/1269440. O destaque em negrito e o sublinhado é do site.