Paulo Oriente Franciulli
02/11/2009
Um filme recente, chamado “Bella”, trata de dois personagens com as seguintes características: uma mulher jovem, com um mau futuro – no mesmo dia em que é despedida, descobre que está grávida e que o pai da criança não querer assumi-la –; e um colega de trabalho, o chef do restaurante, com um mau passado – atropelou acidentalmente e matou uma menina, quando estava em alta como jogador de futebol–. Ambos perderam as esperanças na vida. A moça decide abortar e procurar um emprego; o chef passa a ajudá-la, tentando convencê-la a ter a criança. Uma havia cancelado os sonhos, o outro não conseguia apagar os erros. Graças à amizade que passa a uni-los, ela recupera o sonho, ele obtém a reparação. Ambos voltam a ter esperança.
“Fomos salvos pela esperança” (Rom. 8, 24). Daí tirou o Papa Bento XVI o título da sua segunda encíclica: “Salvos pela esperança”. Isso é algo muito sério. Pressupõe alguém a ser salvo, num estado que exige salvação e algo que realmente salva.
O QUE É A ESPERANÇA?
A esperança é a virtude que tem por objeto o bem futuro, árduo e possível de ser conquistado através do auxílio divino. Esse bem há de ser amado (querido intensamente) por aquele que espera, ou não haverá esperança. Esperar o que não se ama é ter medo.
Ela é virtude porque torna boa a ação do homem e está adequada à reta razão.Teologal porque tem a Deus por causa eficiente primeira (o homem esperançoso apóia-se no seu auxílio) e causa final última (o homem esperançoso alcançará a fruição da bem-aventurança eterna).
O Papa vai além: a esperança cristã só pode ser Deus. Deus caritas est, Deus spes est.
O objeto da esperança é a vida eterna. Esse é o bem a ser amado e buscado. Merece o envolvimento de toda uma existência. Para tentar vislumbrar o significado de vida eterna, podemos “tratar de sair com o nosso pensamento da temporalidade à que estamos sujeitos e augurar de algum modo que a eternidade não seja um contínuo suceder-se dos dias do calendário, mas sim como o momento pleno de satisfação, no qual a totalidade nos abraça e nós abraçamos a totalidade. Seria o momento de submergir no oceano do amor infinito, no qual o tempo – o antes e o depois – já não existe.” (Spe salvi).
Transbordados pela alegria. Coisa que só é possível em Deus e na vida eterna. Aqui na terra não se consegue. Fanny Flagg expressou a efemeridade e a limitação da alegria telúrica numa passagem marcante do seu livro “Welcome to this world, baby girl”. Situa a cena no final da primeira metade do século XX, no interior dos Estados Unidos, a “América profunda”. Descreve uma família, após o jantar. O marido e a mulher conversam, o rádio toca uma música suave, as crianças brincam no alpendre que dá para a rua. Tépida é a noite. Ali e acolá, ao longo da rua, as pessoas conversam em frente às casas, aproveitando as horas de descanso que sucedem a jornada de trabalho e antecedem o sono. A guerra acabou. As feridas cicatrizam. Em dado momento, a esposa se cala, recolhe-se em si mesma e pensa: “Como estou feliz”. Em seguida, uma leve ruga se forma no seu rosto: “Mas, e quando isto acabar?” Porque subitamente tomou consciência de que, mais cedo ou mais tarde, o marido morreria, as crianças cresceriam e iriam embora, a casa ficaria vazia e silenciosa, e a cidade se desfiguraria. Os seus receios acabaram por cumprir-se, um a um. São os dois fardos da alegria antes do Céu: o temor de que acabe e a mistura da dor. A esperança ajuda a mitigar essa consideração. Haverá uma alegria sem fim.
CARACTERÍSTICAS DA ESPERANÇA
A esperança é a virtude que faz caminhar (em direção a uma meta: a outra vida). Todos caminham ou são levados a caminhar pelo tempo que não para. E, do ponto de vista meramente terreno, caminham para o declínio, o fim, a morte. Segundo a triste afirmação de Karen Blixen, a vida é uma máquina de transformar cãezinhos simpáticos e gorduchos em cachorros decrépitos e sarnentos. Eis uma consideração que pode gerar desespero em quem não tem esperança.
O caráter dessa virtude teologal é performativo, isto é, plasma de modo novo a nossa vida. Influencia o nosso modo de pensar, amar, querer, sentir, atuar… estar no mundo. Aposta num futuro que muda o presente. Ajuda a enfrentar o que há de amargo no agora (o que há de doce, também é esperança: “se isso já é tão bom aqui, imagine o Céu!”).
O primeiro elemento da esperança é o otimismo (certus an, incertus quando: sei que virá, só não sei quando). Não há esperança pessimista. Porque a essência da esperança é que alcançaremos no futuro uma vida muito melhor que a atual. O que vive de esperança não se instala no presente, antes caminha para o porvir transformador. O otimismo da esperança leva-nos a crescer, que é o melhor modo de aproveitar o tempo. O nosso crescimento é irrestrito, em todos os campos da existência humana.
O segundo elemento da esperança é a convicção de que o advento do futuro depende do atuar humano. A esperança exige uma tarefa, que comporta um compromisso íntimo. Antes de tudo, o que temos de melhorar somos nós mesmos. O futuro só será melhor se cada um de nós crescer. Essa tarefa está cercada de riscos, é uma aventura épica. Uma aventura não isolada, pois há sempre os outros: como ajudantes nossos, ou como destinatários dos nossos esforços. Um dos outros, o Outro, é Deus. Ele nos encarrega da tarefa e está mais interessado no seu êxito do que nós. É o Amigo por excelência, a quem sempre podemos recorrer. Depois estão os outros seres humanos. A esperança cria a solidariedade.
A esperança nos torna virtuosamente destemidos, corajosos. E por quê? Porque a esperança nos faz considerar que o importante é cumprir a Vontade de Deus na nossa vida. Esse cumprimento muitas vezes esbarrará em dificuldades. Algumas dessas dificuldades – como o sofrimento e a dor – nos causam medo . A esperança nos leva a uma gradação com relação ao sofrimento e à dor, na medida em que são queridos por Deus e nos farão bem: aceitar, resignar-se, simpatizar, amar. Isso desarma o medo.
A spes exige de nós paciência e constância (partes da fortaleza): perseverança: Hypomone: saber esperar, suportando pacientemente as provas, condição para obter as coisas prometidas. Contra spem, spe (Rom, 4, 18). É o título do livro-depoimento-contestação de Armando Valladares. Preso político na Cuba de Fidel Castro, o seu caso foi piorando de prisão a prisão. Um homem sem esperança terrena, mas com muita esperança sobrenatural. Embora silenciado pela mídia pró-Cuba, ele venceu.
A esperança supera o mundo bidimensional. Quem faz a opção pela vida animal, tem uma série de deleites, especialmente se tem dinheiro e condições de desfrutar os prazeres, o sossego, o domínio; mas acaba por desiludir-se e ver-se escravo disso. Mais cedo ou mais tarde, cai na aporia (1)
A esperança termina no Céu: aquilo que se vê, não pode ser esperado. O objeto da esperança é a bem-aventurança eterna enquanto possível de ser alcançada. Uma vez alcançada, a esperança cumpre o seu papel e chega ao seu termo. Este é sentido da esperança como a última que morre. Ela é o nosso Virgílio, que nos leva a Beatriz e sai de cena.
A esperança causa alegria. Spe gaudentes Rom 12, 12. Acena-nos com a perpétua felicidade.
OUTRAS VISÕES
A esperança é verde. (2) O verde é a cor da natureza. Na natureza, as criaturas, ao viverem, cumprem um plano e rumam para uma meta. Serena e inexoravelmente. Olhar para o verde descansa e dá paz. O verde é o melhor pano de fundo. A esperança-verde descansa, dá paz e é o melhor pano de fundo da nossa vida: ainda não e todavia já.
A esperança é épica: necessita de heroísmo, de intensidade ou grandeza fora do comum. Ulisses comprometido na volta a Ítaca, onde o espera Penélope. Ambos são heróicos, ambos têm esperança-épica.
A esperança é representada por uma âncora, sinal da firmeza, da segurança. O nosso coração está ancorado no Trono de Deus. A esperança-âncora dá estabilidade à nossa trajetória terrena. Nunca somos tão fortes como quando nos fiamos só de Deus.
ENCONTRANDO A SAÍDA
O homem é redimido pelo amor. A nossa esperança é encontrar um amor perfeito. Não importa o lugar ou as circunstâncias, o importante é que não tenha fim. Os dois personagens de Bella, através de Bella, encontram o amor e a esperança, e servem como metáfora ou imagens do amor e da esperança cristãos.
A última coisa que sai da caixa de Pandora é a esperança.
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Paulo Oriente Franciulli é Professor de Deontologia Jurídica no IICS Instituto Internacional de Ciências Sociais, São Paulo
Notas do blog
1. (dificuldade, de ordem racional, que parece decorrer exclusivamente de um raciocínio ou do conteúdo dele. – Conflito ente opiniões, contrárias e igualmente concludentes, em resposta a uma mesma questão).
2. “O verde (…) é uma cor tranqüilizadora, refrescante, humana. A cada primavera …a terra… se reveste de um novo manto verde que traz de volta a esperança e ao mesmo tempo volta a ser nutriz”.
Também na simbologia oriental “é a cor da esperança, da força, da longevidade (…) É a cor da imortalidade simbolizada pelos ramos verdes.
DICIONÁRIO DE SÍMBOLOS, Jean Chevalier, Alain Gheerbrant. 7ª edição, Rio de Janeiro, José Olympio, 1993. p. 939-940.