POESIA, CRIATIVIDADE E CASAMENTO

 Valter de Oliveira

 01/05/2009

Estava cansado, já tarde da noite, tentando terminar um artigo de caráter político. Parei. Olhei à direita, para minha estante, e vi um livro: “Filosofia, Ética e Literatura”, de Gabriel Perissé (1) Lembrei-me que me fora dado por um aluno de uma turma de sistemas de informação. Tem uma dedicatória simpática, mas o bom jovem que a assinou o fez de modo totalmente ilegível. Uma pena. Tenho quase certeza que é filho de Perissé.

Já tinha lido partes dele há algum tempo. É lindo. Apresenta através da literatura aspectos da filosofia de educação do grande pensador espanhol Alfonso López Quintás. Um livro que merece ser saboreado. Lentamente…

Folheei algumas páginas. Encontrei um trecho que me havia tocado muito. Perissé escreve sobre o martírio do artista que se encontra privado de criar. Depois relata como esta criatividade pode dar encanto também a um casamento. Nele cada cônjuge é chamado a também ser um artista.

“Num casamento em que há unidade verdadeira, um e outro “se desenham”, “se esculpem” interpretam diariamente uma peça teatral rica em improvisação, interpretam uma sinfonia rica em variações sobre o mesmo tema, surpreendem-se cotidianamente (estas as melhores surpresas e estes os frutos já suficientemente maduros, prontos para servirem de alimento) como o poeta que todos os dias admira-se com as mesmas palavras, como o criador que não se cansa de saborear as possibilidades virtualmente infinitas da sua arte e por isso desperta todas as manhãs com disposição renovada de criar.”

“Viver criativamente não conduz a uma sucessão ininterrupta de vitórias espetaculares. A dificuldade presente, as limitações existem, os conflitos são uma realidade, há problemas, há períodos de incerteza, de infecundidade… Mas nada disso assusta o ser criativo. O verdadeiro fracasso de um artista, de uma pessoa criativa, está no momento em que ela desiste”. (…) “Dissociar a criatividade da luta (no fundo, uma luta ética e estética) rouba da criatividade uma das suas mais belas características.” (…) “A luta é a arte da busca renovada. Como diz Adam Philips (…) “viver em casal é uma arte performática”. A luta do artista está em recomeçar o jogo a toda hora. Dominado por esse espírito lúdico-lutador um casal cria um casamento criativo. (…) Renunciando à auto-afirmação para afirmar o nós, como no inesquecível poema “Casamento”, de Adélia Prado”: Há mulheres que dizem:

Meu marido se quiser pescar, pesque, mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto, ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha, de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil” “prateou no ar dando rabanadas” e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa, vamos dormir.
Coisas prateadas espocam: somos noivo e noiva.

Um casal. Dois artistas que jamais desistem, e que se esculpem na rotina encantadora de cada dia.

Notas

1. PERISSÉ, Gabriel. Filosofia, Ética e Literatura. Uma proposta pedagógica. Barueri, SP. Manole: 2004. p.192-195.

Gabriel Perissé é Mestre em Literatura Brasileira e Doutor em Filosofia da Educação pela USP

2. PRADO, Adélia. Poesia Reunida. 3ª edição. São Paulo, Siciliano, 1991. p.252.

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