Muita coisa se fala sobre os Jesuítas e seu trabalho missionário no Brasil e na América Espanhola. Com frequência tal trabalho é associado aos interesses da metrópole. Da mesma forma acentua-se cada vez mais que as missões teriam contribuído para destruir a cultura indígena e seus valores.
A realidade, desnecessário dizer, é muito mais rica e matizada.
O texto que segue é uma pequena parte de um amplo artigo – “Os Jesuítas e suas matrizes utópicas”, de Inácio Strieder (1).
Para darmos uma visão mais clara da ação missionária publicaremos vários textos sobre o assunto (V.O.).
Quem são os jesuítas?
“A Ordem dos jesuítas surge na transição do mundo medieval-renascentista para o mundo moderno. O seu fundador foi um militar, que, após ferido em batalha contra os franceses, decidiu deixar o exército do Rei da Espanha, para formar uma milícia de Cristo, e combater pelo reino de Deus. De soldado do Rei de Espanha transformou-se em soldado de Cristo. Era preciso alistar-se sob a bandeira da cruz. As suas armas seriam a Bíblia, especialmente o Evangelho, os ensinamentos de Pedro e Paulo; os votos de pobreza, castidade e obediência; com uma especial obediência ao Romano Pontífice; o conhecimento das ciências, artes e letras. É a primeira vez na história que alguém forma um exército que privilegia o conhecimento (2). Embora, posteriormente, Inácio de Loyola, o fundador dos jesuítas, advirta que é mais importante avaliar as pessoas pelo que fazem, do que pelo que dizem.
Na proposta de fundação da Ordem, aprovada por Paulo III, em 1540, se diz que a Companhia de Jesus “foi instituída principalmente para o aperfeiçoamento das almas na vida e na doutrina cristãs, e para a propagação da fé, por meio de pregações públicas, do ministério da palavra de Deus, dos Exercícios Espirituais e obras de caridade, e nomeadamente pela formação cristã das crianças e dos rudes, bem como por meio de confissões, buscando principalmente a consolação espiritual dos fiéis cristãos…” As normas do Instituto da Ordem são apenas meios para buscar e servir com todas as forças a Deus.
Uma vez fixados os princípios básicos da Companhia de Jesus, a Ordem dos Jesuítas, pergunta-se quem se poderia filiar a esta Ordem religiosa, como “companheiro de Jesus”, com a capacidade de agir conforme as exigências e princípios propostos. E aí se diz: “Todo aquele que pretender alistar-se sob a bandeira da cruz… para combater por Deus e servir somente ao Senhor e ao Romano Pontífice, seu vigário na terra…persuada-se.” A linguagem é tipicamente castrense: alistar-se, bandeira, combater. Posteriormente, nos Estatutos da Ordem, o Superior da Ordem é denominado de “general”. Mas, ao mesmo tempo, o apelo é dirigido ao indivíduo: persuada-se. Por sua filiação à “milícia de Cristo”, o jesuíta deve ter uma disposição de obediência “ac cadaver”, mas como sujeito a opção de assumir e viver o estilo jesuítico é totalmente pessoal. Neste sentido, a Ordem dos jesuítas é uma Ordem moderna, diferente das Ordens religiosas medievais. Os jesuítas não têm obrigações comunitárias, nem de vida, nem de orações em comum. Não possuem um traje típico como os beneditinos, carmelitas, franciscanos, nem práticas devocionais obrigatórias. Devem ser homens “exímios em letras e humanidades…”, conhecedores de línguas, capazes de se desligarem de seus laços pátrios e familiares, dispostos a serem enviados “sem demora para qualquer região… sem qualquer subterfúgio ou escusa… quer entre os turcos ou outros infiéis, mesmo que seja para as regiões a que chamam Índias, quer para entre hereges e cismáticos, quer ainda para junto de quaisquer fiéis”. Este envio poderia ser em grupo, ou individualmente, pois o jesuíta deveria ser alguém totalmente confiável, não necessitando de controle de seus companheiros para cumprir a sua missão. Além disto, deveria ser capaz de discernir no lugar em que atuasse o que era mais conveniente fazer, a fim de encaminhar o seu trabalho para “a maior glória de Deus”. Não deveria ser uma personalidade fraca, que agisse apenas sob as ordens diretas de um Superior presente. Cada qual deveria ser capaz de tomar decisões. Tudo o que fosse útil e favorável à divulgação e prática da mensagem cristã deveria ser respeitado, e assumido como meio de apostolado. Destas decisões, de tempos em tempos, prestaria conta aos seus superiores. Ao Superior Geral da Ordem, em Roma, ou aos seus Superiores regionais. Dali o rico material informativo nos arquivos jesuíticos, hoje muito procurado pelos historiadores. Exemplos desta prática jesuítica são Francisco Xavier, no Japão; Matteo Ricci, na China; Roberto de Nobili, na Índia; Nóbrega, Anchieta, Vieira…, e muitíssimos outros missionários espalhados pelo mundo inteiro.
Como a experiência militar havia ensinado ao fundador dos jesuítas, que nenhum exército desordeiro e desunido ganhava batalhas, exigiu que todos os jesuítas estivessem “unidos pela mente e pelo coração”. Portanto, não deveriam existir desavenças na Ordem, nem indisciplinas. Só assim se atingiria o objetivo máximo a que se almejava.
Penso que estas observações gerais, sobre a filosofia e a mística jesuíticas, já são suficientes para se compreender que o cristianismo e a Igreja, que os jesuítas buscavam, era um cristianismo e uma Igreja transnacional e transcultural. Construir isto, de certa forma, é uma utopia”.
Nota:
- Escrito por Inácio Reinaldo Strieder. Licenciado em filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutor em teologia pela Universidade de Münster-Alemanha. Foi Professor Titular na UNISINOS-RS e na Universidade Católica de Pernambuco. Professor Associado de Filosofia, na Universidade Federal de Pernambuco/Recife (1988-2010). Escreveu diversos livros e publica em Diversas Revistas da área de Filosofia e Teologia, e artigos em Jornais do Recife.
- Os destaques em negrito são do Olivereduc.
Fonte:
https://www.recantodasletras.com.br/artigos/1806673