A IGREJA DIANTE DO NACIONALISMO E DO TOTALITARISMO – 1

TEXTOS SOBRE O TOTALITARISMO  – 3

Giacomo Martina
  1. Nacionalismo e totalitarismo: gênese e caráter

“O ideal nacional, que durante o século XIX constituíra uma das forças mais eficazes de toda a história europeia, passou por uma grande evolução, desde 1870, ao menos na Itália, na França e na Alemanha, especialmente depois da queda de Bismarck, perdendo aquele caráter humanitário e universalista – típico, p.ex., de Mazzini – que na primeira parte do século tinha aproximado os povos desejosos de independência, e degenerando num culto exacerbado da força e da violência, com claras intenções imperialistas. Essa involução foi estimulada por diversos fatores. O nacionalismo é, antes de mais nada, a consequência da concepção hegeliana do estado ético, encarnação do espírito absoluto, dissociado de toda forma transcendente, fonte de todos os direitos, superior à pessoa. Como se expressava, em 1919, um notável jurista italiano de extrema direita, Alfredo Rocco, a pessoa é apenas “um elemento passageiro e infinitesimal da nação. (…) célula do organismo nacional, órgão da nação, instrumento, meio dos fins nacionais”, enquanto a nação, por sua vez, tem uma missão a cumprir, a de se aperfeiçoar, de se desenvolver (…). O nacionalismo é assim doutrina de dever e sacrifício. Dever da nação de cumprir sua missão em relação à humanidade; dever do indivíduo de dar tudo de si mesmo, os seus bens, a sua atividade, a sua vida pela nação, da qual é elemento e órgão”. Sob um outro ponto de vista o nacionalismo pode ser considerado como fruto das tendências literárias vivas na Itália e em outras partes, no início do século XX, o decadentismo e o futurismo, que têm em Nietzche, D’Annunzio, Oriani, Corradini, Maurras e L. Daudet seus precursores e seus heróis (1); a pesquisa prevalece sobre a posse, a potência sobre o ato, a virtude renovadora sobre as leis escritas, as nações jovens sobre as velhas e decadentes.

Ainda não sabiam que eram fascistas. 1) Corradini e os ...
Enrico Corradini

É preciso, enfim, não esquecer a influência do capitalismo, sempre à procura de novos mercados e de novas fontes de matérias primas. Para isso Enrico Corradini oferece um instrumento utilíssimo, o mito das nações proletárias”, exuberantes na população e pobres nos recursos, levadas, finalmente à luta contra as “nações plutocráticas”, preocupadas somente com seus interesses: um novo mito que justifica novas guerras movidas na realidade não por uma necessidade objetiva, mas pela ambição do capital, das quais as classes menos favorecidas acabam, como sempre, pagando as despesas.

O nacionalismo assumiu diferentes formas nos diversos países, mas por quase toda parte transformou o amor da Pátria, que fecha o Estado numa autarquia espiritual e material, considera utopia a coexistência pacífica, fomenta o desprezo pelos outros povos, aguça perigosamente as questões de prestígio e tende a regular a política internacional na base da violência.

Sobre o nacionalismo dos primórdios do século XX, que constituiu um dos fatores principais do primeiro conflito mundial, é que se inseriu o totalitarismo dos vinte anos seguintes. Às causas enumeradas juntou-se a crescente desconfiança pelo regime liberal, que estando já viva antes de 1914 devido à degeneração do sistema parlamentar em parlamentarismo e devido à incerteza das classes dirigentes, bastante submissas ao capital diante da questão social, agigantou-se depois de 1918, pela crise econômica geral, a qual de novo se aguçou nos anos 30 por causa dos desgostos dos vencido e dos vencedores, da difícil passagem das estruturas bélicas para as de paz, do lento e árduo restabelecimento da ordem interna. A falta de confiança nas democracias, a força das massas, a necessidade de novos Césares constituem os motivos que tornaram famosos o livro de Oswald Spengler, O declínio do Ocidente, porque refletiam as tendências do tempo. O medo do socialismo – do qual vai definitivamente (2) se diferenciando, naqueles anos, o comunismo (na Itália, com a cisão entre  comunistas e socialistas, em 1921, e o nascimento do Partido Cominista Italiano (DCI) -, difundido não só na burguesia e em muitos católicos, incapazes de perceber os motivos válidos do protesto das massas e a eficácia a longo prazo de uma política de amplas reformas sociais, mas também, e talvez sobretudo, no capitalismo agrário e industrial, ansioso por conservar o próprio predomínio econômico e político ameaçado pelas novas forças, incrementou em setores cada vez mais amplos da opinião pública, na Itália, na Alemanha, na Espanha e em outros lugares a convicção de que somente um regime autoritário ofereceria uma solução para a crise do Estado e da sociedade. A vitória dos partidos totalitários foi, todavia, determinada de maneira próxima pelo apoio econômico do capitalismo, pelo apoio político das castas militares, pela violência das esquadras de ação (organizações armadas que se transformaram em organização paramilitar fascista(N.T.), pela força de sugestão dos chefes. Verificou-se esse processo de maneira bastante semelhante na Itália, nos anos 20, na Alemanha, nos anos 30, na Espanha, alguns anos mais tarde (…).

O resultado final foi diferente, conforme os países. Na Alemanha, o totalitarismo assumiu formas extremas, racistas e imperialistas amplamente inspiradas na obra de Rosenberg, O mito do século XX e no Mein Kampf, de Hitler, que logo se manifestaram na esterilização dos deficientes físicos e dos doentes mentais (lei de 14 julho de 1933), na eliminação física da ala radical do partido e da oposição de direita (20 de junho de 1934), nas várias medidas anti-semitas até a noite dos cristais (novembro de 1928, com assassinatos de judeus, incêndios e saques de suas propriedades), na eutanásia aplicada em larga escala em doentes, na tragédia final de 1939-45, com o genocídio de milhões de judeus (provavelmente 5 a 6 milhões). Na Italia, a prática foi com grande frequência mais moderada que a teoria, mas a perda das liberdades políticas não foi compensada pela solução dos problemas sócio-econômicos que há tempo pesavam sobre o país. Na Espanha e em Portugal, o fascismo significou substancialmente a vitória das forças conservadoras e filomonárquicas. Em todo caso, o Estado totalitário aceitou a concepção nacionalista da subordinação do indivíduo ao Estado e da absoluta independência deste de toda lei transcendente.; estendeu as sua  intervenções a todos os setores da vida humana, privada e pública, chegando a ditar leis na gramáica, na arte e na moda; fez apelo ao mito da nação e da raça; desenvolveu até a caricatura o culto do chefe do partido (Führersprinzip). Na Alemanha e na Itália, ele justificou o seu imperialismo com a concepção darwiniana da seleção da espécie, aplicada aos povos, acabando por levar a Europa à beira do suicídio.

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Giacomo Martina, SJ, é importante historiador católico e professor de História da Igreja na Pontifícia Universidade Gregoriana em Roma.

Notas:

  1. Destacamos o pensamento de dois dos pensadores citados:
  1. Enrico Corradini (1865-1931) foi romancista, jornalista e nacionalista italiano. Entre 1908 e 1910 começou a apresentar a Itália como uma “nação proletária”. Conceito que, na opinião de um historiador, “era uma concepção verdadeiramente tribal da nação. Nestes termos, seria utópico imaginar que a junção das nações, conduzisse a um supranacionalismo humanitário. Se a vida, como os darwinianos explicavam, era uma luta pela existência, então a existência das nações só podia ser uma luta entre elas. Havia que devorar, para não ser devorado. Assim, o imperialismo era a única opção para a nação proletária.
  • Charles Maurras (20-04-1868 – 16-11-1952) foi poeta, jornalista e líder do movimento monarquista francês Ação Francesa. Foi teórico do nacionalismo integral. Seu movimento perdeu força com a condenação do Papa Pio XI.
  • Em nota de rodapé Martina cita trecho do manifesto do futurismo: “Nós que remos cantar o amor do perigo, o hábi- to da energia e da temeridade. A cora-gem, a audácia, a rebelião serão ele – mentos essenciais à nossa poesi (…). Queremos exaltar o movimento agres-sivo, a insônia febril, o passo rápido, o bofetão e o murro (…). Não há outra beleza senão na luta. Nenhuma obra  que não tenha um caráter agressivo pode ser uma obra de arte (…). Queremos glorificar a guerra – a única higiene do mundo – o militarismo, o patriotismo, o gosto destruidor dos libertários, as belas ideias pelas quais se morre e o desprezo pela mulher” O Manifesto foi publicado por Marinetti na França, no “Figaro” de 20 de fevereiro de 1909, e foi depois reimpresso em I manifesti del futurismo, Florença, 1914, pp. 6-7.
  • Ponto controverso. Até que ponto o nazi-fascismo realmente se distanciou da essência dos ideais socialistas?
  • Os destaques em negrito são do site olivereduc.

Bibliografia:

MARTINA, Giacomo. História da Igreja de Lutero a nossos dias. Vol IV, A era contemporânea. Trad. Orlando Soares Moreira. São Paulo, Loyola, 1997, p. 119-123.

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