A guerra da Ucrânia já completou um ano. Muito se fala sobre ela e sobre quem é responsável por sua eclosão. Uns acusam Putin, outros dizem que tudo foi provocado pelos ucranianos e pela OTAN. No artigo que segue um autor liberal dá sua explicação. (Olivereduc.com).
Tentar interpretar as ações da Rússia sob uma ótica Ocidental não logrará êxito
Os russos foram escolhidos escatologicamente. Eles devem oferecer resistência à falsa fé, à pseudo-religião do liberalismo ocidental e à disseminação de seu mal: modernidade, cientificismo, pós-modernidade e a nova ordem mundial.
Esta é a tese de Aleksandr Gelyevich Dugin, o proeminente filósofo russo e mentor do presidente Vladimir Putin. Sendo uma “área pivô” geográfica, a Rússia deve recuperar sua posição no coração do continente eurasiano.
Filosofia política
A teoria política de Aleksandr Dugin, baseada no tradicionalismo, quer libertar o socialismo de suas características materialistas, ateístas e modernistas. Ele classifica sua abordagem de “a quarta teoria política” (2012), pois é dirigida contra as outras três ideologias convencionais: comunismo, liberalismo e fascismo.
Dugin, que leciona sociologia e geopolítica na Universidade Lermontov, de Moscou, está à procura de uma nova ideia política para a Rússia. E ele a encontra na identidade tradicional da região, a qual Dugin associa a “religião, hierarquia e família”. Como tal, sua teoria é uma “cruzada” contra a pós-modernidade, a sociedade pós-industrial, o pensamento liberal e a globalização.
Em sua terra natal, Aleksandr Dugin é um muito conhecido como geoestrategista e mentor do atual presidente russo, Vladimir Putin. Para Dugin, os EUA são uma ameaça à cultura russa e à identidade da Rússia. Ele deixa sua posição inequivocamente clara ao declarar que:
Acredito firmemente que a Modernidade está absolutamente errada e a Sagrada Tradição está absolutamente certa. Os EUA são a manifestação de tudo que eu odeio – Modernidade, ocidentalização, unipolaridade, racismo, imperialismo, tecnocracia, individualismo, capitalismo.
Aos seus olhos, os EUA são “a sociedade do Anticristo”. Os Estados Unidos da América são o país sinistro e alarmante do outro lado do oceano, “sem história, sem tradição, sem raízes […] o resultado de um experimento puro feito pelos racionalistas utópicos europeus”.
Ele lamenta que os EUA estejam impondo sua dominação planetária e vivenciado o triunfo de seu estilo ao redor do mundo. Ele critica o fato de que “única e exclusivamente em si mesmos” os EUA veem as normas do progresso e da civilização.
De acordo com Dugin, os EUA negam a todos os outros “o direito ao seu próprio caminho, a sua própria cultura e ao seu próprio sistema de valores”. Sua conclusão, consequentemente, é que enterrar os EUA “é nosso dever religioso”.
A salvação não só da Rússia, mas de praticamente todo o continente eurasiano, é o retorno à sua “Sagrada Tradição”. Aos olhos de Dugin, a Rússia deve retornar à sua verdadeira identidade. Um retorno à grandeza da Rússia é uma obrigação moral. E os EUA estariam impedindo o cumprimento deste destino messiânico.
Geopolítica
Na visão de Dugin, a cisão cultural possui uma contraparte geopolítica. Sua grande visão é criar um eixo Paris-Berlim-Moscou que preencha o buraco negro geopolítico deixado na Eurásia após o fim da União Soviética.
Alguns dos conceitos básicos da geopolítica de Dugin remontam ao geógrafo geopolítico inglês Halford J. Mackinder e ao teórico geopolítico alemão Karl Ernst Haushofer (1869-1946). Mackinder (1861-1947) apresentou sua tese de que o coração da Eurásia é o “pivô geográfico da história” em uma reunião da Royal Geographic Society já em 1904.
O prognóstico de Mackinder dizia que, embora a vasta área da Eurásia tenha sido inacessível aos navios, essa desvantagem terminaria porque a Rússia estaria prestes a construir um sistema ferroviário abrangente. Ser inacessível aos navios não seria mais uma desvantagem. Com o sistema ferroviário, o Império Russo estaria a caminho de pressionar “a Finlândia, a Escandinávia, a Polônia, a Turquia, a Pérsia, a Índia e a China”. No mundo como um todo, uma Rússia modernizada “ocuparia a posição estratégica central que a Alemanha usufrui na Europa”.
À época da apresentação de Mackinder no início do século XX, Londres já estava preocupada com a ascensão da Alemanha como uma potência industrial. E se a Rússia seguisse esse caminho, um novo e potencialmente maior rival surgiria. Impedir qualquer aliança entre Rússia e Alemanha ganhou prioridade estratégica nos círculos de política externa do Reino Unido.
O conceito de manter o equilíbrio de poder na Europa e anunciar a conquista da Rússia pela Alemanha, ou vice-versa, tornou-se um imperativo estratégico, e motivou a Grã-Bretanha a entrar na Primeira Guerra Mundial, em 1914.
Na década de 1920, a visão geoestratégica de Karl Haushofer, de um eixo que iria de Paris, Berlim e Moscou a Tóquio, ganhou forma na Alemanha e também atraiu estrategistas soviéticos. A teoria geopolítica de Dugin representa a continuação desta linha de pensamento, e segue tanto Haushofer quanto a máxima de Mackinder: “Quem governa a Europa Oriental comanda seu coração. Quem governa seu coração comanda a Ilha-Mundo. Quem governa a Ilha-Mundo comanda o Mundo”.
Para Dugin, o conflito entre a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e o Pacto de Varsóvia durante a Guerra Fria situa-se no mesmo contexto da guerra entre Cartago e Roma. Com o fim da União Soviética e a ascensão dos Estados Unidos como a única superpotência, esse conflito histórico atingiu um novo estágio.
Hoje, a Rússia está sozinha contra uma OTAN ampliada. Com isso, o conflito entre a região atlântica e o coração da Eurásia caminha-se para um confronto.
Uma década antes de a visão de mundo geopolítica de Dugin ganhar destaque, o estrategista geopolítico americano Zbigniew Brzezinski também identificou o coração do Leste Europeu como uma região-pivô. Em seu livro The Grand Chessboard: American Primacy and Its Geostrategic Imperatives (2016), Brzezinski explica que, para manter seu papel primordial no mundo, os EUA devem incluir a Alemanha e o Japão como suas fortalezas nos lados ocidental e oriental do continente euro-asiático para manter a Rússia sob controle.
Quanto à importância da posição geoestratégica da Rússia e de seus vizinhos, não haveria muita diferença entre Aleksandr Dugin e Zbigniew Brzezinski. Para ambos, a Eurásia é o tabuleiro de xadrez sobre o qual a luta pela primazia global continua a ser jogada. A diferença fundamental, no entanto, entre os Estados Unidos e a Rússia é que o colapso da União Soviética deixou os Estados Unidos na posição única de se tornar a primeira superpotência com alcance global.
Para estabelecer essa hegemonia, explica Brzezinski, a Eurásia é o “axial geopolítico”, e a Ucrânia seria um estado-pivô geopolítico. Segue-se que “sem a Ucrânia, a Rússia deixa de ser um império eurasiano. […] No entanto, se Moscou recuperar o controle sobre a Ucrânia […] a Rússia automaticamente recupera novamente os meios para se tornar um poderoso estado imperial, abrangendo a Europa e a Ásia.”
Crítica
É difícil entender que Dugin reivindique “tradição” e “identidade” quando, na verdade, a história russa dos séculos XIX e XX foi um desastre.
Foi o apego a tradições imaginárias que lançaram as bases para que as calamidades acontecessem.
Foi a resistência dos czares contra o liberalismo e o capitalismo, que continuou sob os soviéticos até a atual liderança, que bloqueou o progresso da Rússia.
No século XX, a Rússia experimentou uma catástrofe após a outra. A Guerra Russo-Japonesa de 1905 terminou com uma derrota humilhante e provocou revoltas violentas no país. A Primeira Guerra Mundial custou milhões de baixas e devastou a economia da Rússia. A tomada de poder bolchevique levou à sangrenta guerra civil de 1918-1921, seguida pela guerra russo-polonesa de 1919-1920. A União Soviética começou sua existência paralelamente ao estabelecimento do GULAG, a vasta rede de campos de concentração.
A industrialização forçada e a coletivização das terras agrícolas geraram o Holodomor, a fome com milhões de mortes na Ucrânia e no Cazaquistão. O regime de terror de Stalin prendeu milhões em campos de trabalho forçado.
A Segunda Guerra Mundial de 1941-45 trouxe terríveis baixas militares e civis e foi imediatamente seguida pela Guerra Fria com sua corrida armamentista e envolvimentos caros em muitos países do Terceiro Mundo. A trágica guerra no Afeganistão, que durou mais de dez anos, até 1989, deu o golpe final e levou ao colapso da União Soviética. A tentação fracassada de estabelecer uma economia de mercado não trouxe prosperidade, mas estabeleceu o capitalismo de estado oligárquico.
Igualmente problemática é a análise de Dugin de que guerra e a cultura representam o principal conflito entre a área atlântica e o coração da Eurásia. Para ambos os aspectos, guerra e cultura, seu conceito de “atlanticistas” contra “eurasianos” é fundamentalmente falho. As guerras entre as nações marítimas europeias marcaram a história desde os tempos da Grécia e Roma e atingiram novos patamares após a descoberta da América.
Da mesma forma, as “potências terrestres” França e Alemanha invadiram a Rússia e ambas foram derrotadas pela Rússia com a ajuda dos “atlanticistas”.
Quanto à tese de que há uma cisão cultural fundamental entre a Europa Ocidental e as terras russas, vale lembrar que a Igreja Ortodoxa Russa em muitos aspectos está mais próxima do catolicismo do que a Igreja Católica está do protestantismo no Ocidente. A literatura e a música russas do século XVIII foram profundamente influenciadas pela parte ocidental da Europa, e as contribuições russas repercutiram fortemente na Europa Ocidental.
Não foi uma ruptura cultural que fez a Rússia adotar o marxismo em vez do capitalismo de livre mercado e os valores do liberalismo clássico. A Rússia importou essas falsas ideologias do Ocidente. Ao optar pelo marxismo do Ocidente em vez do capitalismo liberal do Ocidente, a Rússia cometeu seu maior erro até hoje.
Com relação à atual guerra na Ucrânia, não apenas a política externa da Rússia se tornou refém da geopolítica; ocorreu o mesmo com os EUA. Ao perder a Ucrânia, a Rússia teme perder sua identidade junto com a chance de se tornar um proeminente ator global novamente. Para os EUA, a Ucrânia é vista como o estado-pivô crucial para manter e expandir sua posição hegemônica global.
Em ambos os países, os formuladores de política externa olham para o mapa geográfico e veem um tabuleiro de xadrez. Ambos parecem acreditar que a autoridade sobre a Ucrânia decide definitivamente seu próprio futuro.
Não seria a primeira vez na história que uma “idée fix“, como a determinação geográfica dos assuntos mundiais, coloca em risco a prosperidade e a paz em todos os continentes.
Conclusão
Caso continue seguindo o caminho ideológico de Aleksandr Dugin, a Rússia cometerá outro erro trágico. Em vez de acreditar nas ilusões de uma tradição imaginária, a liderança russa deveria reconhecer que, a não ser com o capitalismo de livre mercado, não haverá liberdade nem prosperidade.
Historicamente, a casa da Rússia não está fora da Europa. São Petersburgo e Moscou são cidades europeias. Se, no entanto, as potências ocidentais não conseguirem integrar a Rússia em um sistema de segurança comum, o país se voltará para a Ásia. Com China, Índia e Irã, novas associações estão disponíveis.
Considerando o papel estratégico “pivô” da Ucrânia, tanto a Rússia quanto os EUA podem estar errados.
Sobre o autor
Antony Mueller
É doutor pela Universidade de Erlangen-Nuremberg, Alemanha e, desde 2008, professor de economia na Universidade Federal de Sergipe.
Nota: a opinião do artigo não reflete, necessariamente, a opinião do site olivereduc.