HONDURAS: MOSQUITOS E CAMELOS

 Ronaldo Ausone Lupinacci*

 23/10/2009

No momento em que concluo a redação destas linhas (19/10/09), persiste o impasse surgido com a deposição de Manuel Zelaya, da presidência de Honduras. De algum tempo para cá, entretanto, foi possível notar um progressivo mutismo dos diversos governos a respeito do caso, sobretudo de dois dos principais protagonistas, Estados Unidos e Brasil. Qual teria sido a motivação deste afastamento gradual?

Tão logo Manuel Zelaya foi deposto da Presidência da República de Honduras, o governo interino de Roberto Micheletti recebeu – dos quatro cantos do mundo – coordenados bombardeios nos campos diplomático, econômico e “midiático”, compondo pressão nunca vista antes, até mesmo contra os piores déspotas da atualidade.

O cerne das acusações de governantes, de entidades internacionais (ONU, OEA, ALBA), e de meios de comunicação (da imprensa burguesa, inclusive) consistiu em que teria havido “golpe de estado”, explicando-se deste modo as qualificações pejorativas dirigidas ao governo interino tais como “governo de facto”, “golpista”, “usurpador” e quejandos. Em outras palavras, tais acusadores imputaram ao governo chefiado por Roberto Micheletti a ruptura da ordem jurídica interna daquele pequeno e pobre país centro-americano, que teria sido desencadeada com o fim de tomar o poder, em prejuízo da autoridade eleita pelo povo.

Em assim sendo, vale dizer, colocando-se em primeiro lugar a acusação de rompimento da ordem jurídica, qualquer análise imparcial e objetiva dos fatos deveria ter principiado pelas normas do ordenamento jurídico vigente em Honduras, a começar pela respectiva Constituição. Mas isso, inexplicavelmente, não aconteceu. Inexplicavelmente?

Quiçá desconfiados diante de tão suspeita e surpreendente omissão, diversos juristas passaram a estudar a fundo o assunto, concluíndo que foi Zelaya o infrator da lei, e, que agiram segundo o devido processo legal as instituições promotoras de sua destituição (Supremo Tribunal, Parlamento, Ministério Público e Forças Armadas). Menciono quatro trabalhos jurídicos, todos de rico conteúdo, na ordem cronológica em que foram divulgados:

a-)  de Cícero Harada, Presidente da Comissão de Defesa da República e da Democracia da OAB-SP, que com base no ensinamento doutrinário de Hans Kelsen afirmou não terem os fatos e a aplicação do conjunto de disposições constitucionais hondurenhas configurado qualquer “golpe de estado” (“Honduras: Golpe de Estado?”,emhttp://textospra.blogspot.com/2009/07/449-honduras-golpe-de-estado.html);

b-) de Luis Enrique Marius (uruguaio), diretor geral do CELADIC e membro do Observatório Pastoral do CELAM, autor de contundente texto acerca das manobras fraudulentas empreendidas por Zelaya (“O respeito e o reconhecimento da verdade”, em http://www.catolicanet.com/?system=news&action=read&id=53452&eid=142);

c-) de Lionel Zaclis, mestre e doutor em Direito pela USP, que demonstrou tanto a violação da lei por Zelaya, como a observância da regularidade processual de sua deposição (“Á luz da Constituição, não houve golpe em Honduras”, em www.conjur.com.br);

d-) de Dalmo de Abreu Dallari, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, insuspeito dada a sua notória filiação esquerdista, para quem “não há dúvida que Zelaya estava atentando contra a normalidade jurídica e a democracia em Honduras” (“O fundamento legal omitido”, emwww.observatorioda imprensa.com.br).

Não se pode crer, absolutamente, que tanto as chancelarias de incontáveis países, as assessorias jurídicas de organismos internacionais, como os poderosos mass media carecessem de informações sobre a Constituição de Honduras, e sobre o funcionamento das instituições daquele estado soberano. A conclusão é clara: sonegaram as informações e distorceram os fatos, deliberadamente. A qualificação deste comportamento recebe a designação de má-fé. E isso, mesmo sendo cabível a objeção no sentido de que Zelaya não poderia ter sido sumariamente expatriado, vale dizer de um pormenor com a dimensão de um mosquito, no conjunto dos acontecimentos.

Dentre os acusadores ímprobos incluiu-se, trêfego, o governo brasileiro. Ao mesmo tempo em que fustigava Micheletti, o Itamaraty, “sem alarde” como assinalou a Folha de S. Paulo, instalava embaixada na Coréia do Norte (www1.folha.uol.com.br, 08.07.09). Na mesma Coréia do Norte onde tripudia uma das ditaduras mais ferozes da atualidade. Mas, provavelmente porque aquela tirania comunista treinou guerrilheiros brasileiros, e, também, forneceu dinheiro para a subversão armada no Brasil, recebeu como retribuição o tratamento amistoso acima referido (www.estadao.com.br, 13.09.09). Pouco antes, o governo Lula havia realizado ingentes esforços para readmissão de Cuba na Organização dos Estados Americanos, conquanto lá também se mantenha, há décadas, um regime opressivo e criminoso. Mais exemplos poderiam ser citados. Em outras palavras, outros enormes camelos.

Nestes tempos borrascosos, que prenunciam um futuro próximo ainda muito mais borrascoso, falta-nos a distensão de espírito para nos deter em destrezas literárias. De qualquer modo, ao refletir sobre os fatos acima comentados, me vem à memória a incisiva observação de Victor Hugo, dirigida às contradições do ser humano, encarnadas pelo personagem Mess Lethierry: “existe a intolerância dos tolerantes, como existe o furor dos moderados” (em “Os Trabalhadores do Mar”). Existem, também, a lógica dos incoerentes, como a justiça dos hipócritas, isto é, daqueles que filtram mosquitos e engolem camelos (S. Mateus 23, 24).

* O autor é advogado e agropecuarista. ( [email protected]).

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