“Discuto se realmente a democracia brasileira não seria uma mera democracia de acesso, com o povo sendo chamado para as eleições, mas com pouquíssima influência”, escreve (Arte: TUTU)
Norberto Bobbio, em seu livro “A Teoria das Formas de Governo” lembra que o termo democracia “tem, de modo geral, nos grandes pensadores políticos, uma acepção negativa, de mau governo” (pág. 33; editora Universidade de Brasília, 1976). Após citar Otanes, Dario, Heródoto e Aristóteles, e lastreando-se em crítica a Megabises sobre a distinção de governos monárquicos e populares, conclui Bobbio: “Essa comparação nos dá um exemplo claro da gradação das Constituições, boas ou más, de que falei na introdução (não há governos bons ou maus, mas governos melhores ou piores do que os outros”; págs. 34 e 35). É que “democracia” — governo do povo (“demos”), para os autores clássicos— era um regime pior que a “politia”, governo da cidade (“polis”).
Quando presidi o “Gabinete de Estudos sobre o Amanhã”, em 1979, escrevi para o livro daquela instituição, editado pela Resenha Universitária e intitulado “Ano 2000”, um estudo sobre “a legitimidade do poder e uma teoria de alcance” —tema que retornei em meus livros “Uma Breve Introdução ao Direito” e “Uma Breve Teoria do Poder”.
A rigor, no mundo inteiro, vivemos apenas uma “democracia de acesso”; isto é, os países em que o povo escolhe seus dirigentes, mas estes, quando eleitos, fazem o que bem entendem, pois suas promessas eleitorais, como dizia o saudoso Roberto Campos, comprometem apenas os que as ouvem.
Estamos ainda longe de uma real democracia no planeta, sendo que Steven Levitsky e Daniel Ziblatt poderiam melhor intitular seu livro —de “Como as Democracias Morrem” para “Porque as Democracias Não Crescem”.
Brasil, Estados Unidos, França, Inglaterra, Áustria e inúmeros outros países vivem uma crise democrática que é uma crise de legitimidade, visto que neles as ideologias, que são a corruptela das ideias, vicejam, tornando os adversários políticos inimigos figadais, pois utilizam-se do populismo para a conquista ou manutenção do poder.
Aqui, o “princípio da eficiência”, do artigo 37 da Constituição Federal (CF), é substituído pelo “princípio do amigo”, valorizando-se a “teoria das oposições” de Carl Schmitt, o qual declarava que “a ciência política é a ciência que estuda a oposição entre o amigo e o inimigo”.
É de se perguntar se a Suprema Corte, que não representa o povo, mas a lei (artigo 102 da CF), pode mudar o direito positivo ou fazer a lei que a Constituição declara que cabe ao Congresso fazer —ou, em casos excepcionais, à Presidência da República.
É de se perguntar se o Congresso, que deve zelar por sua competência normativa perante os outros Poderes (artigo 49, inciso XI), tem exercido esta função, como representante do povo, ou tem se omitido, permitindo que o Poder Judiciário aja em seu lugar.
É de se perguntar se o Poder Executivo tem sido fiel aos compromissos de campanha.
Não discuto neste artigo, até porque não privo da intimidade dos condutores dos Três Poderes, a idoneidade e a competência dos que estão à frente deles; dois representantes do povo e um apenas da lei, razão pela qual está em último lugar no Título IV da Constituição.
O que discuto é se realmente a democracia brasileira não seria uma mera democracia de acesso, com o povo sendo chamado para as eleições, mas com pouquíssima influência, após eleitos seus representantes, na condução dos destinos do país, considerando-se, os detentores dos Três Poderes pouco harmônicos e mal independentes, terem mandato dos deuses e não da sociedade, razão pela qual seriam livres para o exercício do poder sem limitações.
Creio ainda estarmos longe de uma verdadeira democracia, “em que todo o poder emanaria do povo” (artigo 1°, parágrafo único, cia Constituição Federal).
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Ives Gandra Martins é presidente do Conselho Superior de Direito da
FecomercioSP
Artigo originalmente publicado no
jornal Folha de S.Paulo em 15 de novembro de 2020.
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