Madeleine Lacsko
Nos últimos anos, assistimos à ascensão de grupos identitários que se declaram vítimas constantes de opressão, mas que, paradoxalmente, conseguem impor sua agenda sem quase nenhuma resistência. Enquanto isso, aqueles que exercem sua liberdade religiosa são alvo de ações estatais rigorosas, enfrentando uma mão pesada do Estado. Um exemplo claro dessa contradição pode ser visto no recente episódio envolvendo “intervalos bíblicos” nas escolas de Pernambuco, que foi alvo de investigação do Ministério Público.
Os chamados “intervalos bíblicos” eram organizados pelos próprios alunos em horários de recreio, sem interferir nas aulas. Eram grupos cristãos se reuniam para ler e discutir a Bíblia. Essa prática, no entanto, chamou a atenção do Ministério Público, que instaurou um procedimento administrativo para fiscalizar a atividade religiosa nas escolas. Isso já faz um tempo, mas ganhou as manchetes agora porque gerou protestos de parlamentares, que acusam o Estado de interferir na liberdade religiosa dos alunos.
Como podemos viver em uma sociedade livre quando alguns podem tudo e outros são censurados pelo simples fato de exercerem sua liberdade de crença?
O promotor responsável, Salomão Abdo Aziz Ismail Filho, destacou que o objetivo era garantir a laicidade do ambiente escolar (1). Mas, a questão que surge é: por que o Estado é tão rápido em agir contra expressões religiosas enquanto grupos identitários parecem ter um passe livre?
O contraste é evidente quando olhamos para como grupos identitários lidam com questões polêmicas, especialmente em temas como hiper sexualização e censura. Esta semana, um professor da Universidade Federal do Maranhão levaram uma travesti para executar a performance “Educando com o (…) em um evento educativo.
Certos grupos radicais fetichistas e hiper sexualizados conseguem impor sua agenda sem qualquer crítica ou restrição significativa. Imagine o que aconteceria se um professor hétero, branco e cisgênero (2) decidisse fazer uma performance sexual explícita em uma sala de aula. Seria, sem dúvida, um escândalo de proporções inimagináveis, com toda razão. No entanto, quando o discurso é revestido de uma suposta “luta contra opressões”, qualquer comportamento, por mais absurdo que seja, parece ser justificado e até aplaudido.
Essa dualidade cria uma falsa sensação de justiça social para alguns. Grupos identitários que se declaram vítimas de uma opressão sistêmica conseguem impor suas demandas com uma facilidade surpreendente. Qualquer crítica a eles é prontamente silenciada, rotulada como preconceito ou discurso de ódio. Essa “imunidade” dá a esses grupos o poder de ditar as regras, criando uma censura velada, onde quem ousa discordar se vê marginalizado e condenado publicamente. O que vemos, então, é uma imposição ideológica disfarçada de luta por direitos.
Enquanto isso, aqueles que buscam praticar sua fé de maneira pacífica, como no caso dos estudantes cristãos em Pernambuco, são alvo de uma intensa fiscalização estatal. A defesa da laicidade do Estado, que deveria ser uma garantia de imparcialidade e liberdade, é aplicada de maneira seletiva. A mesma proteção não é estendida a práticas que envolvem ideologias identitárias, que muitas vezes ocupam o espaço público sem qualquer resistência.
A pergunta que devemos fazer é: por que existe esse desequilíbrio? O Estado, que deveria garantir a liberdade para todos, parece agir com um rigor desproporcional quando se trata de expressões religiosas, ao mesmo tempo em que permite que grupos identitários imponham suas agendas sem questionamento. Será que esses grupos têm um passe livre para fazer o que quiserem justamente porque se apresentam como vítimas? E por que o discurso religioso, que é parte integral da vida de milhões de pessoas, é tratado com tanta desconfiança?
A sociedade precisa refletir sobre a natureza da liberdade que deseja promover. Se continuarmos a permitir que apenas certos grupos tenham o monopólio da expressão, enquanto outros são silenciados ou monitorados pelo Estado, estaremos criando uma sociedade verdadeiramente plural? A verdadeira liberdade consiste em permitir que todos tenham voz, desde que não imponham suas crenças ou comportamentos sobre os outros. A censura, seja ela imposta pelo Estado ou por grupos com poder de silenciamento, é sempre um ataque à liberdade.
O Brasil, ao se aproximar de potências autoritárias como a Rússia, China e Irã, precisa tomar cuidado para não seguir pelo mesmo caminho de censura seletiva e repressão às liberdades individuais. É urgente que o país aprenda a diferenciar entre liberdade de expressão legítima e manipulação ideológica, e garanta que todos os cidadãos, independentemente de sua fé ou ideologia, possam se expressar e viver sem medo da intervenção estatal desproporcional.
Afinal, como podemos viver em uma sociedade livre quando alguns podem tudo e outros são censurados pelo simples fato de exercerem sua liberdade de crença?
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Notas:
- Modernamente se distingue Estado laico de Estado laicista. Estado laico se afirma neutro em matéria religiosa. Não sabe se alguma é verdadeira. Nessa lógica, proclama a liberdade religiosa e até a protege. Já o Estado laicista diz que religião é algo puramente privado e não cabe sua influência no espaço público. Levado ao extremo proíbe imagens em lugares públicos e não permite neles qualquer manifestação religiosa.
No Brasil, em concreto, as duas posições se misturam. No passado permitiu-se aulas de religião católica nas escolas desde que fossem para quem desejasse. Tive aulas assim no ginásio. Cheguei a ser professor de religião no Colégio Estadual da Penha apesar de ainda ser estudante. Hoje em dia, elas também são permitidas já que o Vaticano e o governo Lula, no tempo de Bento XVI assinaram acordo entre os Estados permitindo sua prática. E é aula de religião mesmo, não é cultura religiosa ou história das religiões. Infelizmente tudo é sabotado por governos locais e ongs e grupos laicistas.
2. cisgeneridade é a condição da pessoa cuja identidade de gênero corresponde ao sexo que lhe foi atribuído no nascimento.
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Madeleine Lacsko é jornalista desde a década de 90. Foi Consultora Internacional do Unicef Angola, diretora de comunicação da Change.org, assessora no Supremo Tribunal Federal e do presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alesp. É ativista na defesa dos direitos da criança e da mulher.
O artigo acima não reflete, necessariamente, a opinião do site olivereduc.com