Nos debates públicos sobre a eutanásia durante a reforma do Código Penal, foram frequentemente invocadas questões estranhas ao tema. Ninguém nega que qualquer indivíduo tem, em princípio, o direito de recusar tratamentos que, embora venham com a chancela médica, podem ser por ele tidos como inconvenientes. Compete a cada um avaliar se a recusa a um tratamento, num dado caso, é compatível com o dever ético de cuidar de sua própria saúde.
Mas os campos jurídico e político devem reconhecer a todos a faculdade de auto-determinação no âmbito terapêutico, que se expressa no princípio ético do consentimento informado, o qual simboliza a humanização que deve haver na relação entre médico e paciente. Nesse momento, está em jogo o princípio da liberdade individual, em virtude do qual tampouco se pode obrigar o médico a atuar profissionalmente contra o estado da ciência e sua consciência.
O equilíbrio da relação é frágil. Na dúvida do acerto da decisão do enfermo ou da atuação do médico, convém que o assunto seja submetido à apreciação judicial, a fim de se evitar a coação privada.
Há também um amplo acordo sobre o fato de que não existe sentido em insistir com tratamentos de eficácia terapêutica duvidosa ou inútil em pacientes cuja morte iminente é inevitável. Nesses casos, a única atitude acertada é a de aceitar a situação terminal do paciente, aliviando seu sofrimento por meio de cuidados paliativos e prestando o apoio emocional necessário para assegurar que seus últimos momentos de vida sejam percorridos da melhor maneira possível.
Também pode haver uma legítima diversidade de opiniões acerca da intervenção médica mais conveniente no estágio terminal, até porque, nessa situação, o tempo não é um aliado do médico. A superação do problema deve ser feita por meio de um diálogo claro e sereno entre os médicos, o paciente, caso seja capaz de compreender e avaliar a sua situação, e a família.
Esse relacionamento é denominado apropriadamente como "aliança terapêutica". Em princípio, é preferível que a legislação não tenha que adentrar nesse nível de particularidade, porque há o risco de se estabelecer princípios que não guardem relação com a realidade ou princípios cuja rigidez seja difícil de ser atenuada pela equidade.
Tome-se, por exemplo, uma expressão muito comum em algumas legislações européias: o "direito à sedação terminal". Na mesma linha de raciocínio, teria que se falar também em "direito a antibióticos" ou "direito a anti-inflamatório". Caso se pretenda dizer que estes medicamentos devam ser administrados quando houver prescrição médica, os termos seriam aceitáveis. Mas, na maioria dos casos, isso é desnecessário, porque a medicina deve buscar a cura possível para o paciente.
Tenho a impressão de que o uso dessas expressões num texto legislativo parece indicar que o enfermo ou sua família possam reivindicar o uso desses princípios farmacológicos frente ao médico que, segundo sua consciência e o estado da ciência, não os considera indicados. Existe o perigo de o hospital ser visto como uma espécie de restaurante, onde o cliente chega e ordena o que lhe bem apetece e, por outro lado, reduz a importância do papel do médico a uma espécie de garçom que serve o que lhe é pedido.
Uma concepção de assistência médica definida assim pelas leis de um país constituiria um grave problema ético e político.
Se a eutanásia consiste na ação ou na omissão dos cuidados básicos, com o fim de direta e intencionalmente provocar a morte de outra pessoa, o problema ético-político começa quando a ação ou a omissão de buscar diretamente a morte ganha uma vestimenta legal e se agrava quando se pretende ainda que o sistema público de saúde deva ocupar-se de buscar a morte de seus pacientes.
Por exemplo, uma família, já saturada com anos de cuidados médicos de um idoso acamado e inválido, poderia ingressar com aquele parente naquelas condições e, passados alguns dias, ele seria devolvido bem acondicionado num caixão de alabastro. A justificativa poderia ser a de que aquele quadro clínico era tão negativo e sem sentido que seria bom e conforme o direito a adoção de um protocolo dirigido intencionalmente para acabar com a vida daquele doente.
Uma enfermidade poderia converter-se num mal de uma dimensão tal que "justificaria" a transgressão do princípio jurídico do não matar o semelhante. Na raiz dessa postura e do problema ético-político, há uma teoria: existem vidas dignas de serem vividas e outras não. E uma tentação: conferir a alguém um poder arbitrário sobre a vida e a morte das pessoas. Com respeito à divergência, é o que penso.
André Gonçalves Fernandes é juiz de direito e professor do Instituto Internacional de Ciências Sociais ([email protected]