A ética deve ser a idéia orientadora para evitar que o processo globalizante não se tome mais uma arma de dominação de poucos países. Porém, cabe a pergunta: como a ética pode influenciar nações tão díspares para um mundo melhor?
O tema crucial do processo de integração mundial são os valores que presidem o relacionamento internacional neste início de século e de milênio. O atentado ao World Trade Center surpreendeu o mundo. Após a fase inicial de estupor e revolta diante da tragédia, o desastre começou a ser esclarecido. Ao compasso das investigações sobre a ação terrorista, surgiram tentativas de explicação e a ética nas relações internacionais tornou-se o tema do momento.
Inicialmente ganhou força a tese do “choque das civilizações” enunciada por Samuel Huntington em 1997. O futuro das relações internacionais estaria associado ao fator cultural. As culturas que impregnam as diversas civilizações entrariam em conflito em uma conjuntura de integração mundial. A globalização, de acordo com Huntington, contribuiu para esse cenário e tem a sua parte de responsabilidade: “a globalização incentiva e permite que gente como Bin Laden trame seus ataques ao centro de Manhattan, enquanto está em uma gruta do Afeganistão pobre”. (O Estado de S.Paulo, 28/10/2001, pág. A23). O ataque terrorista, na opinião de Huntington, restituiu ao Ocidente sua identidade comum.
A interpretação dos ataques aos Estados Unidos levantou a questão de saber quais são os valores que presidem às diversas civilizações como elementos subjacentes à explicação dos acontecimentos e da história. É preciso esclarecer, entretanto, que o responsável pela tragédia não foi o mundo islâmico, mas apenas um grupo radical que não representa adequadamente o Islã. Como apontou Henry Kissinger, “a América e seus aliados precisam tomar cuidado para não apresentar esta nova política como choque de civilizações entre o Ocidente e o Islã. A batalha é contra uma minoria radical que macula os aspectos humanos manifestados pelo islamismo em seus períodos grandiosos” (Folha de S.Paulo, 20/11/2001, Especial, pág.6)
O episódio das Torres Gêmeas, entretanto, alertou o mundo quanto à importância dos valores que presidem as culturas e civilizações. Ou seja, a ética nas comunicações, na economia, na política e na cultura é o elemento-chave para o futuro do mundo. Este é o fator fundamental que deve ser analisado na globalização.
Antes de avançar nesse estudo é necessário indagar: há uma única ética correta, aplicável a uma determinada situação, ou a ética é passível de interpretação diversa em função de fatores circunstanciais? Mais: há valores universais, que se aplicam a todos os povos de todos os tempos, ou os valores éticos são relativos?
O mundo presente vive mergulhado no relativismo ético. Sob a égide do relativismo, a ética torna-se subjetiva, sendo impossível chegar a qualquer conclusão objetiva e permanente. Esse é o grande dilema e limitação do mundo moderno: a ética esqueceu as suas origens como estudo filosófico, na Grécia clássica, sob a poderosa luz da inteligência de Sócrates.
ÉTICA DA CONVICÇÃO X ÉTICA DA RESPONSABILIDADE
Nas relações internacionais, por exemplo, o dualismo ético foi formulado por Max Weber ao distinguir entre uma ética da convicção e uma ética da responsabilidade: “toda a atividade orientada segundo a ética pode ser subordinada a duas máximas inteiramente diversas e irredutivelmente opostas. Pode orientar-se segundo a ética da responsabilidade ou segundo a ética da convicção” (Weber, 1968, pág. 113). O partidário da ética da convicção deve velar pela doutrina pura. Seus atos “visam apenas àquele fim: estimular perpetuamente a chama da própria convicção” (idem, pág. 114). A ética da responsabilidade, por sua vez, tem como guia as previsíveis conseqüências dos atos: “o partidário da ética da responsabilidade, ao contrário, contará com as fraquezas comuns do homem <...> e entenderá que não pode lançar a ombros alheios as conseqüências previsíveis da sua própria ação” (idem, págs. 113-114)
Sob este ponto de vista, Weber afirma que os meios podem justificar os fins: “para alcançar fins «bons», vemo-nos, com freqüência, compelidos a recorrer, por um lado, a meios desonestos ou, pelo menos, perigosos, e compelidos, por outro, a contar com a possibilidade e mesmo a eventualidade de conseqüências desagradáveis” (idem, págs.114). A diferença entre essas duas éticas, tal como as resume Dahrendorf, consiste em que “a primeira abraça valores absolutos; é a moralidade dos santos. A segunda reconhece a complexidade das relações meios-fins; é a ética dos políticos” (1997, pág. 86).
É possível conviver com as duas éticas? Tanto para Weber quanto para muitos políticos e teóricos das relações internacionais, sim. Para Dahrendorf, não; e explica: “a insistência na qualidade absoluta de determinados valores fundamentais foi, creio eu, a razão de ser da tese que apresentei em Homo Sociologicus. Nunca confie na autoridade, pois é possível usá-la de forma horrivelmente abusiva. É certo que há condições – e as vimos prevalecer em tantos países, durante este século – nas quais a «ética da convicção» é a única moralidade válida” (1997, pág. 87).
É somente a partir de uma ética da convicção que a análise dos valores nas relações internacionais e, portanto, na presente conjuntura de globalização que atravessa o mundo, pode ser frutífera. É precisamente a ética que presidiu o pensamento de Sócrates, Platão e Aristóteles, na Grécia clássica.
ÉTICA E VIRTUDES
A partir do momento em que há um reconhecimento de que a ética não é relativa, é possível analisar quais os valores que devem estar presentes nos diversos aspectos da globalização. Estudar os valores presentes na globalização é analisar as motivações humanas. Muitas respostas foram dadas a esta questão, porém a proposta de Aristóteles na sua obra Ética a Nicômaco permanece atual e importante. Para Aristóteles, as pessoas atuam procurando um bem, sendo que o bem mais importante é a felicidade.
É possível estabelecer uma ponte entre os valores da globalização e a obra de Aristóteles. Reconhecendo que há diversas opiniões sobre a felicidade, Aristóteles afirma que alguns colocam a felicidade no prazer, ou na riqueza, ou em outras coisas. A maioria das pessoas coloca a felicidade na riqueza e no prazer; porém, de acordo com o filósofo, nesse objetivo não reside a felicidade. Espíritos mais refinados põem a felicidade na glória, porém também não é nas honras que reside a felicidade. A felicidade se encontra na virtude. É na virtude que reside o fim do homem.
Para quem coloca a felicidade na riqueza, a globalização econômica pode ser uma fonte de oportunidades. Para Aristóteles, a riqueza é um bem exterior necessário como um meio, pois é impossível fazer o bem quando faltam recursos; porém, não deixa de ser um meio e não um fim da vida humana.
A glória da vida pública está associada ao poder político. Também não é este o fim da vida humana, de acordo com Aristóteles. A virtude é o verdadeiro fim do homem. É por essa razão que Aristóteles dedica a sua ética ao estudo da virtude: como definir e alcançar as virtudes, como meio para uma vida feliz. No processo de globalização, os fatores econômicos e políticos são importantes como meios para que as pessoas possam praticar as virtudes. A virtude que sobressai nesse processo é a justiça. E a esta virtude é que o filósofo grego dedica o livro V da sua obra.
A justiça deveria presidir a evolução da globalização como um valor universalmente presente no processo. O reconhecimento do valor universal da justiça como virtude para todos e a ser praticada por todos seria um bom começo para o futuro dos âmbitos econômico e político. Entretanto, a prática da justiça pura e simples não eliminaria o fosso existente entre países nem superaria as limitações e dificuldades econômicas de países ou pessoas que carecem dos mínimos meios para a própria subsistência. É nesse ponto que surge um novo valor, não econômico, para amenizar e corrigir as distorções ou assimetrias promovidas pela globalização: a solidariedade.
A solidariedade não se impõe. É um valor humano que vem de dentro. Somente a solidariedade pode ajudar a mudar o que a simples justiça não pode alterar. Nas últimas décadas, pari passu com a globalização, tem aumentado o número de organizações de voluntários, ONGs, instituições religiosas e entidades diversas que têm contribuído para sarar as feridas abertas da desigualdade. Ainda assim, um sexto da população mundial vive em países muito pobres. Há muito a ser feito e somente a partir dos valores é possível corrigir aquilo que a política e a economia, no novo mundo a caminho de uma maior integração, não conseguem solucionar de um modo satisfatório.
São, portanto, os valores presentes nas civilizações os verdadeiros responsáveis pelo destino do futuro mundial nas próximas décadas e séculos. Se a justiça e a solidariedade prevalecerem sobre a riqueza e o poder, ainda há esperança para o nosso futuro comum.
José Maria Rodriguez Ramos
é doutor em Economia pela USP e Coordenador do curso de Ciências Econômicas da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP).