Em uma aprazível comarca da minha Minas Gerais, a Promotoria de Justiça processou uma mulher, cuja identidade devo preservar, acusando-a de permitir que suas filhas (de 15 e 16 anos) permanecessem no interior do estabelecimento comercial de sua propriedade, local onde comercializaria bebida alcoólica e cigarro.
Referida mulher é proprietária de um pequeno estabelecimento comercial, no qual labuta, do qual retira o pão da família, desde que o marido a deixou. Como contingência da sorte, trazia consigo as filhas no ambiente de sua lida e, quando podia, deixava-as aos cuidados de parentes e amigos. Não havia prova de que suas filhas, ou qualquer outro menor, tivesse feito uso de bebida alcoólica ou de cigarro no estabelecimento. Não havia prova de que houvesse exploração do trabalho das filhas. A permanência no estabelecimento era o único fato objetivo da acusação.
Com efeito! Tirante a circunstância de que é extralegal servir a menor bebida alcoólica ou tabaco, de resto a venda de tais produtos é absolutamente lícita, como lícita é a atividade comercial que se dedica ao mercadejo de tais artigos de consumo. Eu concordo que, na medida do possível, o recomendável seria que as menores não permanecessem naquele ambiente de trabalho, evitando assim contato com pessoas que ali comparecem para desfrutar do ócio ebrifestivo. A decisão, no entanto, sobre a conveniência da permanência delas ali, é da mãe. Diante do contexto e da realidade daquela senhora, não cabia ao Conselho Tutelar, à Promotoria, ao Judiciário ou, em resumo, ao Estado imiscuir-se na educação de suas filhas.
Por certo, ela preferiria trazer as filhas em outro ambiente, propiciar-lhes boa escola e tudo mais que a sua condição financeira proíbe.
Eu cá fico a me perguntar: o que essa senhora fez de errado?
Eu respondo: em verdade, nada!
Se ela nada fez de errado, por que diabos o Estado está a meter o bedelho em sua vida?
Responderei novamente: porque nada sustém a fúria normatizante do Estado, que tudo quer regrar; as liberdades inclusive. E, como afirma Ortega y Gasset, "Este é o maior perigo que hoje ameaça a civilização: a estatificação da vida, o intervencionismo do Estado, a absorção de toda espontaneidade social pelo Estado; quer dizer, a anulação da espontaneidade histórica, que em definitivo sustenta, nutre e impele os destinos humanos" ("A Rebelião das Massas", eBooksBrasil.org ).
Na perspicaz análise de Nivaldo Cordeiro, "A maior das mentiras da modernidade foi recriar o antigo mito sofista da igualdade, sobrepondo-se à necessidade mais terrivelmente ameaçada de todos os tempos, a liberdade. (...) O resultado dessa visão errônea é a estatização progressiva e inexorável da vida cotidiana. Tudo passou a depender do ente estatal. A moeda é do Estado, os regulamentos se multiplicam, a vida espontânea tende ao desaparecimento. Os homens são "coisificados", tratados com seres incapazes de uma vida adulta e responsável. É o Estado-mamãe, que tudo provê, mas que não permite o menor desvio de seus regulamentos. Afinal, as leis são inexoráveis e quando se legisla sobre a banalidade da vida torna-se a própria vida uma prisão infame" ("As Massas e o Estado em Ortega y Gasset", sítio eletrônico www.nivaldocordeiro.net).
Deveras, não é dado ao Estado imiscuir-se na vida das pessoas ao ponto de anular suas liberdades. Não é permitido ao Estado adentrar a residência das famílias, com a falaciosa cartilha do "politicamente correto" em riste, para dizer como devem educar seus filhos, como devem viver...
Com razão Ortega y Gasset quando afirma que "A velha democracia combinava liberalismo e entusiasmo pela lei. As minorias podiam atuar e viver ao amparo do princípio liberal e da norma jurídica. Hoje triunfou uma democracia hipertrofiada, em que a massa atua diretamente sem lei, por meio de pressões materiais, impondo suas aspirações e seus gostos. A massa atropela tudo que é diferente, egrégio, individual, qualificado e seleto. Quem não é como todo o mundo, quem não pensa como todo o mundo corre o risco de ser eliminado. E agora, todo o mundo é só a massa" (idem).
Não há negar que o Estado é a notável criação humana que evoluiu e transformou-se em um máquina formidável que funciona com grande eficiência pela quantidade e precisão de seus meios: é o produto mais visível e notório da civilização. Mas é preciso domesticá-lo. É necessário "trazê-lo para proporções humanas. Fazer novamente o criador dispor de sua criatura" (Nivaldo Cordeiro, idem). E "a tarefa dos homens livres é lutar para conter os apetites deste ente pantagruélico" (Reinaldo Azevedo, "O Livre Mercado e o Caráter").
O Magistrado - sabiamente - absolveu a pobre mulher.
Márcio Luís Chila Freyesleben - Procurador de Justiça- Ministério Público - Minas Gerais
Fonte: www.endireitar.org