Governos, para efeitos de análise de suas políticas econômicas, podem ser divididos em duas "equipes": a "econômica", que normalmente inclui Fazenda e Banco Central e a "política", formada por demais ministros e por parlamentares da chamada base aliada. A primeira determina a política e o regime monetário e a política e o regime cambial e a segunda os gastos públicos e tributos e, portanto, a política fiscal e o regime fiscal. Deve existir coordenação entre as duas equipes, ou seja, uma precisa dar sustentação à outra, para que o jogo da política econômica seja cooperativo.
Mas isso não acontece no Brasil, pelo menos, desde o início dos anos 80: as equipes políticas, sucessivamente, aumentam as despesas do Estado e o Banco Central termina sempre sendo chamado para apagar os incêndios. No governo Lula, essa falta de cooperação entre as pressões para aparelhar a máquina estatal e elevar os gastos de custeio do setor público, motivadas por razões políticas e ideológicas, de um lado, e o que o Banco Central, de outro, executa em termos de estabelecer taxas de juros compatíveis com as metas de inflação, vem se tornando um problema sério, que trará efeitos perversos sobre nossa economia e - o que é moralmente lamentável - comprometerá as gerações futuras com pagamentos de dívidas que estão sendo assumidas no presente. A conta, certamente, virá mais cedo ou mais tarde, na forma de inflação fora de controle, de desemprego, ou de uma combinação desses dois males.
Durante o primeiro mandato, quando Palocci comandava a Fazenda e órgãos como o IPEA mantinham-se dentro de sua boa tradição essencialmente técnica e apartidária, o cabo-de-guerra era aparentemente menos desequilibrado, pois envolvia uma disputa entre Fazenda e Banco Central, com suporte técnico, e, do outro lado, políticos, com suporte na ideologia ou no número de votos esperados. O presidente, esperto, dava uma no cravo e outra na ferradura e, como as condições externas eram favoráveis, os problemas de falta de coordenação ficavam, digamos, escondidos sob o tapete estendido nos palanques de sua retórica populista.
Mas a substituição de Palocci por Mantega na Fazenda e a lamentável partidarização (petetização) do IPEA fizeram o cabo-de-guerra transformar-se em uma disputa entre forças desiguais: quando um órgão antes técnico emite "estudos" que mais parecem panfletos tentando fazer crer, com viés claramente político-ideológico, que o Estado brasileiro é "pequeno" e quando o ministro da Fazenda endossa essa inverdade, o Banco Central acaba sozinho na disputa e a pergunta passa a ser: por quanto tempo resistirá às pressões que sofre dentro do próprio governo?
A crise econômica mundial e os perigos que representa para o Brasil estão obrigando, no entanto, o presidente a descer do muro e a tomar parte no cabo-de-guerra. A percepção é que, como quase sempre acontece nesses casos, principalmente em função das eleições de 2010, o homem que criticou os "banqueiros brancos e de olhos azuis" optará pelo que lhe for politicamente conveniente. Aliás, a recente substituição do presidente do Banco do Brasil, a pretexto de reduzir os spreads, já é uma indicação dessa tendência. Estivessem o presidente e o ministro da Fazenda de fato preocupados com o spread, deveriam, ao invés de politizar o banco, adotar medidas como a redução dos impostos diretos e indiretos incidentes sobre as operações financeiras, do IOF, da Cofins, do PIS, da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL), que subiu de 9% para 15% em 2008, do Imposto de Renda e, principalmente, promover a diminuição imediata do maior percentual de depósito compulsório sem remuneração do mundo.
Os gastos de custeio do governo federal vêem crescendo a taxas incompatíveis com o bom senso e inconciliáveis com a responsabilidade fiscal: entre 2002 e 2008 os gastos de custeio da Presidência da República cresceram 467% em termos nominais e 299,6% em termos reais, isto é, descontando-se a inflação no período! Isso, certamente, terá um preço.
Ademais, em tempos de uma crise séria e de âmbito mundial, o governo acaba de garantir a todos os 5564 municípios, com apoio de sua candidata Dilma Rouseff, os recursos necessários para que os 5,5 milhares de briosos alcaides não percam receitas em decorrência da crise e pretende estender essa "bondade", bancada com recursos públicos, para os 27 estados e o Distrito Federal.
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Além dessa falta de compromisso com a prudência e com a responsabilidade fiscal, o que mais pretende fazer a equipe política do governo? Simplesmente, vai retirar a Petrobras do cálculo da meta de superávit primário em 2010, esperando com isso reduzir em 0,5% do PIB os pagamentos de juros sobre a dívida pública e liberar cerca de R$ 20 bilhões para investimentos - leia-se, evidentemente, para o PAC e para as eleições. Ora, tirar a Petrobrás do cálculo equivale, para efeitos das necessidades de financiamento do setor público, a um "suponhamos que ela não exista". Só que ela existe, Dio mio! Definitivamente, a política econômica passa a subordinar-se às eleições do ano que vem!
Em outras palavras, o cabo-de-guerra declarado, aberto e incontestável da política econômica do governo Lula está armando uma verdadeira bomba-relógio, cuja detonação vai depender do comportamento das expectativas dos agentes econômicos.
Nosso Banco Central não é autônomo; ele simplesmente vem desfrutando, desde os tempos de Fernando Henrique, de uma "autonomia concedida" pelo presidente do país, que pode ser cancelada a qualquer momento, diante do risco de perda de uma eleição. É claro que ele não é infalível: por exemplo, quando a crise explodiu, nossas autoridades monetárias, seguindo o exemplo do presidente e da Fazenda, subestimaram os seus efeitos e, neste momento, proclamam - sem fundamentação sólida - que a recuperação de nossa economia já está praticamente em curso, o que está longe de corresponder à verdade. Mas, apesar dos pesares, em termos do jogo da política econômica do governo Lula, continua sendo o único jogador que vem atuando bem.
Resta sabermos até quando os ditames políticos o vão permitir. Parece inacreditável que a lição não foi compreendida: gastos públicos precisam ser financiados e só há quatro formas de fazê-lo: mais impostos, mais dívida interna, mais dívida externa e lassidão monetária. Isso não é ortodoxia. É simples contabilidade. E bom senso.
(*) Ubiratan Iorio é Colunista fixo de Plurale. Economista, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da FGV Business, presidente do CIEEP - Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista e membro do Conselho de Ética da Associação Comercial do Rio de Janeiro