Há obras de arte proféticas e mais o são quando não foram pensadas para isso. Refiro-me ao filme SANGUE NEGRO, dirigido por Paul Thomas Anderson (autor do roteiro), cujo título em inglês é muito apropriado ("There will be blood"), mas o título em português ficou mais sintético e poético, refletindo bem o que é o filme. O ator principal é o grande Daniel Day-Lewis, atuando de forma esplêndida. O filme ganhou dois Oscars, de Melhor Ator e Melhor Fotografia e, a meu ver, deveria também ter ganhado o de melhor filme, perdido para o também bom filme ONDE OS FRACOS NÃO TÊM VEZ, mas inferior à obra de Anderson.
É um filme profundamente religioso, que desde o primeiro momento retrata o Mal e a possibilidade de redenção. A narrativa é emocionante e nada óbvia. Nenhuma cena pode ser antevista, é sempre uma grande surpresa. Os elementos religiosos estão postos desde a primeira cena: o fundo de uma mina de ouro (a moeda por excelência, que brota das profundezas). O personagem Daniel (vivido por Daniel Day-Lewis) é um homem que incorpora o espírito do próprio Demo sobre a terra. É uma saga que lembra o FAUSTO, de Goethe, só que aqui Fausto e Mefisto formam uma unidade. Da exploração de ouro, na virada do século XIX para o século XX, Daniel muda de ramo e parte em busca do ouro negro, o petróleo, cuja demanda cresce com o surgimento da tecnologia de motores a explosão e outros usos associados ao petróleo.
Daniel torna-se um produtor de petróleo e um acidente na exploração mata o pai de um bebê que trabalha com ele. Ele adota a criança, agora órfã e pai e mãe, usando o garoto para se apresentar como pai viúvo exemplar e, assim, ir ganhando a confiança das pessoas. Jamais se apresenta como o aventureiro ganancioso que é, sem família e sem projetos que não enriquecer. O principal da história começa a se desenvolver quando um certo Paul se apresenta a Daniel para lhe oferecer informações sobre uma rica reserva de petróleo, na fronteira da Califórnia. Essa reserva compreende a terra de muitos pioneiros, entre eles a família de Abel, pai de Paul e de seu irmão gêmeo, Eli, um sujeito que quer ser pastor a qualquer custo.
A história principal é esse duelo entre Daniel e Eli, entre Mefisto e o falso profeta. A igreja fundada por Eli tem o sintomático nome de Igreja da Terceira Revelação. Claro, não há terceira revelação alguma, uma paródia demoníaca para a primeira (Abraão/Moisés) e a segunda (Cristo). A terceira revelação é o reino desse mundo. O duelo entre os dois personagens vai num crescente até o final do filme.
Quero chamar a sua atenção aqui, meu caro leitor, para duas cenas antológicas. A primeira é quando acontece a tragédia do incêndio da primeira torre de exploração erguida na grande jazida da cidade de Little Boston. O filho adotivo, que observava o trabalho dos homens, é arremessado longe e perde a audição (elemento importante das novas peripécias). O que é mais relevante aqui é que um auxiliar de Daniel vem lamentar as perdas com o incêndio da torre. Ele desdenha dizendo que aquilo nada significa diante da confirmação de que eles estão pisando em um mar de riquezas.
A segunda é a cena final, já em 1929 (atenção para a data), quando o pastor Eli vem à casa de Daniel, agora uma mansão requintada e sombria, que tem, ao lado do escritório, um espaço para jogar boliche. [O simbolismo do jogo de boliche não é circunstancial. Há relatos arqueológicos de que esse jogo já era praticado no antigo Egito. Lutero o apreciava tanto que, como o personagem Daniel, mandou fazer um local para sua prática dentro da sua casa. Ganhar o jogo na Idade Média significava "entrar no Céu", derrubar os pinos equivalia a livrar-se dos pecados.]
O pastor Eli, ricamente vestido, em contraste com a simplicidade das vestes que usava no começo do filme, ambientado na virada do século, vem lhe oferecer uma oportunidade de exploração em uma jazida que foi a única não comprada por Daniel, à época. Day-Lewis aqui dá um show de interpretação, de prender a respiração. O pastor quebrou pela débâcle de 1929 (quantos não estarão chorando a miséria neste momento, pastores e não pastores, mas adoradores do ouro negro, com a débâcle de 2008?) e tentar fazer negócio com ele. Daniel ouve tudo. Diz que a condição para ele negociar é Eli confessar que é um falso profeta e que Deus não existe. Abjurar da fé que prega. Eli reluta, mas, desesperado, declara o que Daniel pede. A cena é deprimente, desesperante, mas encantadora, verdadeira arte cinematográfica. Daniel o faz repetir várias vezes, sempre mais alto, a sua apostasia.
Depois lhe diz que nada há a negociar, pois na terra que ele quer vender não há petróleo algum, e que é ele, Daniel, o verdadeiro portador da Terceira Revelação. Em seguida, Daniel o assassina com um pino de boliche. Entra o mordomo e pergunta se quer alguma coisa. Daniel, sentado de costas e tendo ao lado o cadáver de Eli encharcado de sangue escuro (negro!), responde lacônico: "Não, eu acabei".
Penso, meu caro leitor, que essa débâcle de 2008 é como que a terceira revelação citada no filme e nisso consiste seu caráter profético. Quem viver verá.
Fonte: http://www.nivaldocordeiro.net/sanguenegro