Não há tema mais controvertido e ardiloso, nem terreno mais politicamente minado, do que o conflito no Oriente Médio. Partidarismos e desinformação proliferam, especialmente no que diz respeito à posição dos árabes.
Antes de mais nada, é completamente falsa a idéia de que o antagonismo dos árabes em relação aos judeus – mais corretamente ao sionismo -- se deve à confrontação religiosa ou mesmo puramente étnica. A oposição não é aos judeus: fossem brasileiros, islandeses ou bolivianos, a resistência seria a mesma. Pois ela se dá contra uma invasão estrangeira, seja ela de que origem for.
Em outras palavras, os árabes nunca quiseram os sionistas por lá, desde quando começaram a chegar à Palestina, nas primeiras décadas do século XX, não porque fossem judeus, mas por serem invasores armados cobiçosos de suas terras – a grande maioria deles, ademais, sem nenhuma relação com a realidade do Oriente Médio. A história mesma comprova este ponto: judeus, muçulmanos e cristãos têm, ou tiveram, coexistência milenar relativamente pacífica e mutuamente enriquecedora na região. Tal convivência perdurou até meados do século XX, quando a relação azedou de vez com a chegada de uma multidão de imigrantes ilegais à Palestina, movimento este patrocinada pela Grã-Bretanha, a “madrinha” do nacionalismo judaico na primeira metade do século XX.
Foi uma grande injustiça obrigar a pequena e pobre Palestina (cerca de 27 mil km quadrados, ou 10% da área do estado de São Paulo) a receber centenas de milhares de indivíduos, quando países muito mais ricos e extensos se recusaram a tanto. A pequena Palestina, ademais, é inocente do sangue derramado pelo anti-semitismo europeu no século XX. Mas é ela que está pagando, já há mais de meio século, um preço altíssimo pelos crimes cometidos no passado contra o povo judeu.
Outro “mito”, difundido em especial pelos fundamentalismos protestantes dos Estados Unidos, é que a Palestina teria sido desde sempre “propriedade” dos judeus. O fato, ao contrário, é que a Palestina tem sido, ao longo dos últimos 1.300 anos, dominantemente árabe. Mais especificamente, desde que o califa Omar entrou em Jerusalém em 638 depois de Cristo. De lá até a invasão sionista do século passado, a região tem a língua e a cultura árabe como elo de ligação das várias comunidades que lá têm vivido – sejam elas cristãs, judaicas ou muçulmanas.
Para esses fundamentalistas americanos, a Terra Santa, parece, sempre foi judaica. Mas a única vez que ela de fato o foi remonta à longínqua época dos grandes reis-profetas, Davi e Salomão.E seu domínio perdurou por menos de um século, encerrando-se em 926 antes de Cristo. Da Diáspora em diante, a partir do ano 70 DC, quando os romanos derrotaram os judeus, a Palestina nunca foi judaica, por qualquer perspectiva que se analise o fato. Ou seja, a Terra Santa foi dominantemente judaica apenas por um breve lapso, 2.935 anos atrás!
Aliás, no que diz respeito à ignorância sobre a real situação na Terra Santa, os norte-americanos parecem ser imbatíveis. Os árabes são acusados de “anti-semitismo”, uma “acusação” que hoje é lançada a torto e a direito, sem nenhuma discriminação, atingindo até judeus que se opõem ao sionismo. Sem nem mesmo insistir no fato de que os próprios árabes são um povo semita, a acusação é patentemente falsa, pois nenhum povo tem sido historicamente menos “anti-semita” do que os árabes. Por séculos, as grandes cidades do mundo árabe, Damasco, Cairo, Beirute, Bagdá, Fez, Marraquexe, Alexandria, tiveram importantes comunidades judaicas, que floresceram e prosperaram lá. Foi somente depois das guerras promovidas pelo sionismo que os judeus do mundo árabe foram forçados a abandonar terras que se tornaram suas legítimas pátrias. Hoje, a maior comunidade judaica do mundo muçulmano está, surpresa, no Irã!
Foi só a partir dos anos 1920, quando a Grã-Bretanha passou a controlar a região, que terra palestina foi “doada” a um grupo recém chegado, os judeus sionistas. A pergunta que os árabes com razão fazem é: com que direito?
Aqui, a resposta, de forma algo surpreendente, aponta para o fundamentalismo protestante. Pois esta corrente, forte especialmente nos EUA e na Grã-Bretanha, está intimamente relacionada ao fenômeno do sionismo: sem seu apoio decisivo, o nacionalismo judaico não teria conseguido o que conseguiu. O fato é que por conta de interpretações cavilosas de profecias bíblicas, estes fundamentalistas pró-sionistas crêem que devem “acelerar” a Segunda Vinda apoiando a reunião dos judeus – Jesus Cristo só voltaria, de acordo com tais crenças, quando a maioria dos judeus se congregar na Palestina.
Segundo o historiador Victor Danner, estes fundamentalistas, primeiramente na Inglaterra e depois nos EUA, seriam apenas uma seita protestante menor se não tivessem agido eficazmente no sentido de influenciar seus governos em favor do nacionalismo judaico. Ao longo do tempo, estes cristãos sionistas se tornaram uma força importante na formulação da política externa dos dois países. No governo Bush, isto foi particularmente notável, com seu apoio tão cego como fanático a Israel.
Sem dúvida, para esses fundamentalistas pró-sionistas (vale ressaltar que nem todos os fundamentalistas cristãos são pró-sionistas), os judeus são apenas um instrumento para seu objetivo escatológico. Já para os sionistas judeus, os fundamentalistas só interessam por constituir poderosa fonte de apoio, em diversos campos: financeiro, diplomático, midiático, militar.
Ainda segundo Victor Danner, não se deve menosprezar a força que esses sionistas, judeus ou cristãos, têm para influenciar a opinião pública, o Congresso e o próprio governo norte-americanos – que o leitor não se engane, isto continua valendo no governo Obama!
Outro grave equívoco diz respeito à oposição que os árabes, sejam muçulmanos, sejam cristãos, fazem ao sionismo – por eles considerado uma espécie de imperialismo judaico --, oposição esta que englobaria também o mosaísmo. A verdade é que se distingue claramente entre sionismo e tradição judaica. O mosaísmo é uma religião respeitada pelo mundo árabe-islâmico. Ademais, distingue-se entre o judaísmo anterior ao advento de Jesus Cristo e o posterior a ele; ao rejeitar o longamente esperado Messias, a religião como que perdeu seu centro, tornando-se como uma pirâmide sem o topo; esta concepção é também a dos grandes Padres da Igreja (como santo Agostinho) e dos escolásticos (como santo Tomás de Aquino).
O sionismo, assim, não é visto como uma propriedade, função ou conteúdo do judaísmo. Mas sim como uma perversão nacionalista e racista de profecias bíblicas. Para os árabes, tanto muçulmanos como cristãos, o sionismo é mais um desastre político do século XX, com conseqüências catastróficas de proporções que o aproximam do apartheid sul-africano.
Mateus Soares de Azevedo
Pós-graduado em Relações Internacionais pela George Washington University (EUA) e
mestre em História das Religiões pela USP.
Autor de: “Homens de um livro só” (Best-Seller, 2008) e “A Inteligência da Fé: Cristianismo, Islã e Judaísmo” (Record, 2006).